sábado, 1 de outubro de 2011

Música de fé, música de vida


Entendida a África como uma parte histórica do globo terrestre se pode falar em mais de dois mil anos do Samba. A expressão samba é uma forma verbal de alguns dialetos africanos; para os Bacongos (povos do norte de Angola) é o imperativo do verbo cusamba e para os Quimbundos (povos da região centro-oeste de Angola) é o infinito do mesmo verbo.
Constata-se que os verbos em dialetos africanos não têm a terminação em r; na sua maioria terminam com a vogal a ou com o hiato ia. O verbo sambar é uma das tentativas de aportuguesar os dialetos africanos.
O fato tem ocorrido de forma espontânea e natural entre as partes em contato. Neste caso podemos realçar uma destas palavras dos dialetos africanos aportuguesadas no Brasil: “bunda", o que significa para os bacongos "embrulhozinho", "pouquinho", "presente”... e para os Quimbundos significa "nádegas".
O ecamba seria o nome da dança conhecida como samba; neste caso teremos que ultrapassar as barreiras culturais e do tempo, procurar entender a religiosidade dos povos africanos antes e depois do século XV, período em que os Europeus se vêem livres do cerco árabe dando origem ao mercantilismo.
Antes de mais nada, deveria conceituar o ekamba como um dos movimentos físicos mais praticados nos rituais africanos. Em alguns casos é para revelar a agonia ou a felicidade. Caracteriza-se por um movimento conhecido entre os bacongos de mityengo - um dos movimentos físicos que os Bantos (povos da África Negra) fazem em atos conjugais, que se resumem no rebolar dos quadris, característico das danças dos países da África Central. São feitos com tanta perfeição e ardência que tornam-se realmente excitantes.
Os bantos, quando o assunto é falar com Deus "rezar" - "sambar", faziam uma roda em baixo de um njiango (uma sombra artificial), onde seus tambores soavam o ritmo kitolo (lamentação). Daí suas mulheres faziam o ekamba (sacudiam os quadris e o corpo todo como se tirassem a poeira do corpo e os piolhos das cabeças).
Na oração, para os bantos, não é concebível estar sentado ou de joelhos, mas sim dançando, se é que tais movimentos possam ser tidos como dança. Se é, não seria qualquer dança, mas simplesmente a ekamba.
Até porque entendê-la como dança é deturpar os fatos (heresia) e não se pode negar que os movimentos rituais não sejam sensuais, porém não constituem argumento suficiente para tê-los como dança.
Este conceito de oração "dançada" não foi apagado pelos colonizadores, tanto que hoje a própria igreja católica teve que admitir em suas celebrações alguns dos ritmos e rituais das celebrações africanas (antes de Cristo), que se encaixam na primeira e terceira parte da celebração dominical Católica Apostólica Romana (celebração da palavra e ação de graças).
Provavelmente, o episódio do ekamba à samba tenha ocorrido há 400 anos.
Hoje, com mais facilidade, se pode montar o cenário do colapso, se bem que não se tem referência exata do tempo e espaço.
Possivelmente, algum senhor tenha visto seus escravos a rezarem e a pergunta não teria sido outra senão: _ "o que estão fazendo?" E como estes não podiam se envergonhar do ato (falar com Deus - Nzambi, Ngana Nzambi, Nzambi Npungu, Kalunga, Suco, Suco Ngialy, Tata, Otata...), certamente tenham afirmado que estavam a rezar, portanto a sambar.
Para o senhor (colonizador), sem sombras de dúvidas a expressão Samba tenha significado dançar, visto que estes faziam o ekamba.
Para qualquer ocidental da época tais gestos não passavam de uma manifestação animalesca (já que não lhes reconheciam como possuidores de alguma cultura).
Hoje é identidade brasileira. E ainda hoje, uma das províncias de Angola, Uíge, habitado pelos bacongos, conserva uma tradição milenar: _ guando se perde um ente querido, seus parentes2 e amigos se reúnem em volta do cadáver, fazendo soar o ritmo kitolo (aí a lama pouco tempo depois vira poeira).
Os presentes começam a sambar para que Deus tenha em seus cuidados o ente querido. Normalmente estes começam a "dançar" ao pôr-do-sol, e terminam ao amanhecer, momento em que sepultam o cadáver.
Os movimentos e até mesmo os ritmos assemelham-se ao samba brasileiro tendo como principal diferença nesta altura a expressão dos rostos de quem as dança, enquanto o Bacongo cobre-se de panos e chora, a brasileira descobre-se (quase nua) e o faz por razões alegres.

A música sacra do candomblé e seu trasbordamento na cultura popular brasileira
Reginaldo Prandi
Universidade de São Paulo
rprandi@usp.br