Vida e obra
Fotografo - José Araújo de Medeiros (Teresina PI 1921 - L'Aquila, Itália, 1990). Fotógrafo. Começa a fotografar por volta de 1937 como amador, em sua cidade natal. Em 1939, transfere-se com a família para o Rio de Janeiro, onde trabalha como funcionário público na Companhia de Correios e Telégrafos e no Departamento Nacional do Café. Paralelamente, retrata artistas em um estúdio montado em casa e atua como freelancer para as revistas Tabu e Rio. Em 1946, o fotógrafo francês Jean Manzon (1915 - 1990) o convida para integrar a equipe da revista O Cruzeiro, onde permanece até 1962. Publica, em 1957, o livro Candomblé, o primeiro a documentar a religião afro-brasileira. Com Flávio Damm (1928) mantém a agência fotográfica Imagem, de 1962 a 1965. Depois, passa a trabalhar como diretor de fotografia de cinema, além de dirigir curtas-metragens e o longa Parceiros da Aventura, 1979. Assina a direção de fotografia de obras clássicas do cinema nacional como A Falecida, 1965, de Leon Hirszman (1937 - 1987); Xica da Silva, 1976, de Cacá Diegues (1940); e Memórias do Cárcere, 1983, de Nelson Pereira dos Santos (1928). No fim da década de 1980, leciona fotografia na Escola Internacional de Cinema de San Antonio de Los Baños, em Havana, Cuba. Em 1986, a Fundação Nacional de Arte - Funarte realiza a mostra retrospectiva José Medeiros, 50 Anos de Fotografia, no Rio de Janeiro, e publica um livro homônimo.
As noivas dos deuses sanguinários – Reportagem da revista O Cruzeiro de 1951
Em 1951, José Medeiros, então fotógrafo da revista O Cruzeiro, importunado e incomodado por uma reportagem sobre Candomblé publicada na França [2], resolveu propor uma reportagem mostrando os aspectos inacessíveis ao olhar leigo dos rituais de iniciação dessa religião afro-brasileira. Segundo ele, a reportagem estrangeira abordando somente sua parte pública, o cerimonial visível pelo leigo nas festas preparatórias e no encerramento da festa pública, não mostrava o verdadeiro Candomblé. Como era costume no processo de decisão de pauta no Cruzeiro, os fotógrafos tinham autonomia para propor e conduzir uma reportagem, e assim o fez Medeiros. Aprovado o assunto, partiu ele para a Bahia para tentar uma documentação original dos rituais. A dificuldade de aproximação nos terreiros tradicionais levou-o a procurar alternativas e um guia indicou-lhe uma casa não tradicional na qual estavam em iniciação três Yaôs (termo que designa as pessoas que estão em processo de iniciação no Candomblé).
Medeiros relatou-nos que teve uma experiência desagradável quando frequentava os terreiros tradicionais tentando primeiras aproximações com o intuito de fotografar, e logo em um deles, e mesmo sem portar o equipamento fotográfico, foi questionado por uma mãe-de-santo em transe que diretamente dirigiu-se a ele e falou: “Você veio aqui para fotografar, mas não vai, não!”. Medeiros contou-nos essa passagem com um ar de espanto místico, mas, como fotojornalista exemplar, refletiu internamente que não iria desistir de mostrar o “verdadeiro Candomblé” e voltar para a redação sem o material prometido. Assim, mesmo fora dos terreiros tradicionais já se sabia de seus objetivos, afinal, a chegada de um fotógrafo da revista O Cruzeiro causava alvoroço e gerava comentários em qualquer cidade na época, e ele foi procurado por um guia que o conduziu a um terreiro na periferia, no qual estariam sendo iniciadas três Yaôs: o terreiro da mãe-de-santo Mãe Riso da Plataforma.
Contou-nos Medeiros que pagou à mãe-de-santo para fotografar as três Yaôs dentro de sua reclusão e as etapas do ritual de iniciação. Com a carga mística envolvendo sua fala e o fato de estar documentando procedimentos ritualísticos não veiculados pela mídia até então, falou-nos com forte ar de mistério que ainda teve problemas com seu equipamento, pois o cabo de sincronismo do flash quebrou. Como o ambiente era muito escuro, fez as fotos com sua Rolleyflex usando B no anel do obturador (esse dispositivo permite sensibilizar a película por quanto tempo desejar o fotógrafo; enquanto estiver apertando o botão disparador o filme está sendo exposto). Assim, acionando e segurando o disparador na posição B, disparou a luz do flash e imprimiu imagens com ótima qualidade tonal no material fotossensível, demonstrando sua capacidade técnica.
A reportagem foi publicada no dia 15 de novembro de 1951 na revista O Cruzeiro com o título “As noivas dos deuses sanguinários”, contendo 38 fotografias. Segundo Medeiros, a publicação das imagens, que mostravam cenas de sacrifício de animais, cenas internas da reclusão e detalhes do processo ritualístico, causou muita polêmica no meio do Candomblé na Bahia. Ainda, segundo ele, devido à reportagem, as Yaôs não tiveram sua iniciação reconhecida e assim ficaram marginalizadas dentro da religião, com consequências graves para elas, uma suicidou um ano depois e outra foi internada em um hospital psiquiátrico. A mãe-de-santo foi assassinada um ano depois, mas Medeiros não sabia as causas do fato.
Seis anos depois, em 1957, a mesma editora da revista O Cruzeiro publicou um livro chamado “Candomblé” com todas as fotografias veiculadas na revista, com um acréscimo considerável de mais algumas escolhidas por Medeiros, totalizando 60 imagens, 22 fotografias a mais. A nova forma de publicação colocou as mesmas imagens em outro formato e em outra valorização. Se na revista o artifício jornalístico era o sensacionalismo para atingir um formato popular direto e ofensivo à religião já a partir do próprio título, no livro as imagens passaram a ser um material etnográfico precioso e único.
O material fotográfico coletado por José Medeiros transforma-se em conteúdo de uma primeira publicação marcada por um fotojornalismo sensacionalista para um documento etnográfico na apresentação gráfica e nas marcações das legendas no formato livro. O objetivo desse trabalho é discutir as mudanças de significação do material exposto acima, aprofundando a análise às narrativas nos meios impressos em que foi publicado. Na primeira versão temos uma profanação do espaço do sagrado ao tornar visível ao olhar leigo o que é permitido somente para iniciados, e um olhar leigo massificado pela importância da revista O Cruzeiro na opinião pública da época. Na segunda versão temos as mesmas imagens sem o tratamento sensacionalista, mas com uma abordagem que transparece uma aparente neutralidade na explicitação do ritual, tornando-as um documento etnográfico ou científico, coroando-as com uma nova aura para o sagrado profanado. O deslocamento contextual encontra a gênese da fotografia como realidades múltiplas permitindo, desta forma, significações diferenciadas, sagradas ou profanas.
Os formatos de apresentação de material etnográfico nos meios de comunicação de massas e suas decorrentes consequências com a invasão do olhar leigo voyeur e massificado, muitas vezes preconceituoso e induzido pela mídia em relação às cerimônias e rituais tradicionais de culturas locais não globalizadas produz significações descontextualizadas muitas vezes pejorativas e elevadas ao campo do exótico. Entretanto, as mesmas imagens descoladas do contexto jornalístico reencontram seu referente vivificado no valor etnográfico das imagens publicadas no livro.