sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Agudás - brasileiros no Benin

O Benin atual, que deve a sua configuração aos meandros da geopolítica colonial europeia, reúne várias etnias.
O país se define como uma “jovem nação constituída de cerca de vinte grupos socioculturais que geraram entidades homogêneas do ponto de vista linguístico e cultural e que são possuidoras de uma base territorial.
São estes:
no sudoeste: Adja, Xwatchi, Gen, Xwéda, Xwla;
no sul: Fom, Toli, Toffin;
no sudeste: Gum e Iorubá;
no centro: Ioruba, Fon, Mahi;
no norte e nordeste: Botombu, Dendim Fulbe;
no noroeste: Betamaribe, Waaba, Yowa.
” Verificamos de imediato, pois, que os “brasileiros” não constituem um grupo “sociocultural” nos moldes dos demais.
Eles não possuem, de fato, nem língua (tendo o uso do português desaparecido por imposição da colonização francesa) nem território próprio.
Entretanto, eles possuem um status diferenciado nesta sociedade, como o demonstra, vox populi, a frase que introduz este texto.
Eles são também facilmente reconhecidos pelos seus sobrenomes de origem portuguesa, para ficar apenas no que é mais evidente.
Infelizmente, não há meios de se saber com precisão quantos são, mas estima-se que eles representem nunca menos de 5% da população total do país, considerando-se evidentemente as mulheres casadas, que perderam o sobrenome de origem ao se casarem, e seus filhos.
Tendo em vista que estes descendentes de brasileiros e de antigos escravos retornados não mantêm relações com o Brasil há praticamente um século, seja no plano familiar, político ou administrativo,
é o caso de se perguntar como conseguiram preservar esta identidade étnica diferenciada e por que não se diluíram no conjunto da população.
Em outras palavras, a problemática central deste estudo é o processo permanente de construção social do grupo étnico agudá no Benin.
O antigo escravo retornado do Brasil, embora continuasse sendo um africano, ao chegar à África não era mais aquele indivíduo, filho de fulano, casado com sicrana, natural de tal aldeia e súdito de tal rei.
Na verdade, todos os seus laços familiares e sociais tinham sido cortados pela escravatura, o que fez dele, uma vez de retorno, uma espécie de africano genérico - para utilizar o conceito de Darci Ribeiro (1995:318) a propósito dos índios destribalizados no Brasil.
Outro aspecto importante a ser considerado é que ele volta, normalmente, ao porto onde foi embarcado para o Brasil e acaba ficando por ali mesmo, já que a sua aldeia ou seu meio social de origem está completamente mudado se é que não desapareceu de todo.
Há também os casos, bastante numerosos, daqueles que foram vendidos pela sua própria família ou por facções políticas rivais, o que por si só já constitui uma forte razão para que o africano de retorno não queira ou não possa se reinstalar na sua aldeia natal.
Como explica Kátia de Queiroz Mattoso (1982:30), “havia o hábito de se desvencilhar das cabeças mais problemáticas da aldeia, daqueles que infringiam as leis da comunidade roubando ou cometendo adultério;
eram também vendidas as crianças consideradas como bocas inúteis, difíceis de alimentar em período de crise, ou os endividados, ou ainda os vencidos na guerra e os filhos de mães diferentes da do herdeiro quando da morte do rei pai.”
O exemplo mais célebre desta prática é o da mãe do rei Guêzo, vendida por Adandozan (Verger, 1953 et Hazoumé, 1937:31).
Eu mesmo pude verificar, ao longo das minhas pesquisas, vários casos semelhantes, todos vividos com resignação, mas sempre abordados com muita reserva e com indignação.
A Sra. Amélia Sossah, née Olympio, irmã caçula de Sylvanus Olympio, primeiro presidente da República do Togo, nos dá um depoimento bastante esclarecedor sobre como esta prática foi vivenciada pelas populações da antiga Costa dos Escravos.
“As pessoas não sabiam, na época da escravatura, que do outro lado do mar havia muito sofrimento - ela nos explica. Houve pais que entregaram eles mesmos seus filhos aos traficantes.
Eles diziam: 'se você não for obediente, vou te vender aos brancos', acreditando que a criança partia para voltar cheia de bens.
Ela voltará com outra civilização, e vai honrá-los, aos pais, os quais pegavam eles mesmos as crianças teimosas, as que roubavam ou eram recalcitrantes, eles iam dá-las: 'eu te faço presente do meu filho'.
Infelizmente mais tarde as crianças jamais voltavam.
Enquanto que eles esperavam que seus filhos voltariam para aliviar seus sofrimentos, na verdade eles os enviavam para o sofrimento.”
O acerto de contas no seio das famílias parece ter sido também muito frequente.
A este propósito, eis um trecho do depoimento exemplar do Sr. Hilário Bandeira, residente em Lomé, sobre a história do seu ancestral:
“O fato é que o nosso avô, que veio do Brasil com o nome de Bandeira, não era brasileiro.
Você ouviu bem. Ele não era brasileiro. Nós viemos de Savalou. Nós somos mahis. Sua aldeia era Mokpa. Você sabe muito bem que por vezes há disputas nas famílias
Se alguém procura ver com mais clareza as coisas, procura-se afastá-lo. Por quê? Por causa da herança. Se ele é esclarecido, ele pode tomar tudo daqueles que não compreendem nada, ou quase nada. Esses então eliminam as pessoas. Foi o caso do nosso ancestral.
De fato, sejam vendidos, ou seja, dados, estes indivíduos que tinham partido como escravos - portanto já excluídos desta sociedade à qual estão de volta - se encontram então completamente alienados da estrutura social autóctone.
Eles são diferentes dos outros, vestem-se como os brancos, comem com talheres e se dizem católicos, na maioria, ou muçulmanos.
Pedreiros, marceneiros, carpinteiros, alfaiates, comerciantes no sentido capitalista do termo, entre outras profissões, além de serem muito frequentemente alfabetizados, eles se consideram do lado do progresso e da modernidade diante de uma sociedade que eles percebiam antes de tudo como primitiva e selvagem.
Esta sociedade, por sua vez, continua vendo-os como escravos, a despeito de suas “maneiras de branco”.
A identidade étnica se constrói a partir da diferença (Poutignat & Streiff-Fenart, 1995:41), ou seja, em relação ao outro.
Como enfatiza Manuela Carneiro da Cunha (1985:206), “o que se ganhou com os estudos sobre a etnicidade foi a noção precisa de que a identidade é construída de maneira situacional e por contraste, ou seja, que ela constitui uma resposta política a uma determinada conjuntura, uma resposta articulada com as outras identidades envolvidas, com as quais forma um sistema.
“A construção da identidade baseia”-se, portanto em uma estratégia de valorização das diferenças, e neste aspecto, como veremos ao longo deste trabalho, a situação é muito clara: os antigos escravos retornados consideram os autóctones como selvagens, e continuam sempre vistos por estes como escravos que imitam as “maneiras do branco”.
No seu conjunto, os antigos escravos - sejam de origem ioruba, fon, mina ou outras - só tinham em comum entre si o fato de terem sido escravos no Brasil, de falarem português, de terem “maneiras de branco” e de se dizerem católicos.
É então com os brancos, no caso os brasileiros há muito estabelecidos na Costa, que deles vão se identificar e estabelecer alianças. E como “brasileiros” serão considerados.
Foi justamente a partir da experiência de vida adquirida do Brasil, comum a todos eles, que os antigos escravos conseguiram assimilar-se aos agudás - como eram chamados os brasileiros estabelecidos na região - e assim compartilhar seu lugar na sociedade local.
Esta experiência lhes permitiu, sobretudo, se inserirem na economia do lado dos que davam as ordens, e não simplesmente como força de trabalho.
No momento em que o confronto entre a cultura tradicional e o capitalismo em expansão adquire contornos mais nítidos na região, eles estão capacitados a assumir o papel de senhores e de impulsionar a economia ao lado dos comerciantes e dos traficantes brasileiros.
Estes últimos os acolheram muito bem e os utilizaram para desenvolver os seus negócios.
A reunião destes dois grupos - um composto pelos comerciantes e traficantes brasileiros ou portugueses e o outro pelos antigos escravos retornados - desenhou o perfil da comunidade agudá tal qual ela é hoje.
Nela encontramos ao mesmo tempo a soberba dos senhores de escravos - condição que a maioria realmente adquiriu desde a sua chegada de volta na África - e os hábitos de escravos adquiridos no Brasil.
Um dos aspectos mais importantes a destacar do estudo deste grupo social é sem dúvida a maneira exemplar com que estes antigos escravos conseguiram se inserir na própria sociedade que os havia excluído.
Eles eram certamente libertos no Brasil, mas não na África, onde eram considerados pela maioria da população como escravos.
Ora, foi justamente na sua própria condição de escravos, ou seja, na experiência da escravatura no Brasil, que eles foram buscar a matéria prima para construir uma nova identidade coletiva que lhes permitiu ter uma função social e econômica na condição de plena cidadania na mesma sociedade que os havia rejeitado.
A origem, a religião e a língua são, geralmente, considerados os principais pontos de apoio para a constituição de um grupo étnico.
De fato, para conseguir se inserir na sociedade local, os ex-escravos valorizaram sua “estada” no Brasil, único ponto comum a todos eles, que tinham na verdade as mais diversas origens étnicas.
É como se a escravatura fosse tomada como o ponto de partida para uma nova vida, como se ela fosse miticamente escolhida como a nova origem comum. Desta foram, é justamente a cultura adquirida no Brasil que comanda o processo.
A língua portuguesa e a religião católica são utilizadas para compor a nova identidade coletiva, que é na verdade a identidade dos brasileiros já estabelecidos na região.
A inserção dos ex-escravos na sociedade global, enquanto cidadãos se dá, então, por meio da identificação deles com os membros da colônia brasileira, fato esse reconhecido por todos os atores sociais envolvidos, que chamam indistintamente tanto uns quanto outros de agudás.
De modo que podemos afirmar que antigos traficantes e os ex-escravos superaram socialmente a contradição em princípio insuperável entre as suas condições sociais iniciais para constituírem juntos um grupo social suficientemente forte para poder consolidar as vantagens econômicas e sociais já adquiridas pelos primeiros brasileiros estabelecidos na região.
Ser agudá atualmente no Benin é compartilhar uma memória comum relativa a um conjunto de realizações e a uma maneira de ser à “brasileira”. Para melhor compreender esta situação, podemos dividir o processo de construção desta identidade social em três períodos sucessivos.
O primeiro começa no momento em que a presença dos negreiros brasileiros na Costa se torna mais forte, a partir do começo do século XIX.
O tráfico de escravos era então proibido e os baianos tudo fizeram para assegurá-lo alguns anos mais. Estes traficantes e comerciantes brasileiros eram brancos que viviam à sua maneira e que se casaram com mulheres nativas.
Eles mantinham relações comerciais e políticas com os autóctones, que eram de certo modo assimilados por meio do casamento.
Eles não eram muito numerosos, apesar da sua grande importância econômica e política, fizeram fortuna e viviam segundo sua própria cultura.
“Eles mandavam vir suas roupas da França ou do Brasil” - nos conta a Sra. Amélia Sossah, née Olympio - a propósito de seus ancestrais.
“Eles se vestiam como os brancos, eles comiam na mesa como brancos, sua louça, tudo vinha do Brasil.”
Eles eram brancos em uma sociedade negra, os filhos mestiços eram semelhantes a seus pais como quaisquer outros, e se chamavam todos e eram por todos chamados de agudás, designação que remontava já há várias gerações.
Um segundo momento é o da chegada maciça dos antigos escravos, a partir de 1835.
Eles serão entre 7.000 e 8.000 a retornar do Brasil para se instalarem na região.
Eles eram negros, mas tinham “maneiras de branco”.
Eles discriminavam os autóctones, que consideravam como “selvagens”, assim como eram rejeitados por estes, para quem eles continuavam sempre a ser “escravos”, ou seja, excluídos.
A questão da escravatura, praticamente ausente dos livros escolares e, muito frequentemente, minimizada nas obras eruditas sobre o antigo reino do Daomé, está entretanto sempre presente nas relações sociais e pessoais.
De fato, como sublinha C. Meillassoux (1986:107), “a captura (ou a compra que pressupõe a captura) marca os escravos de um estigma inapagável”.
O tráfico na região foi inclusive o motor da economia durante séculos, e a escravatura sempre tinha sido uma instituição entre todos os povos envolvidos.
Não é de estranhar, portanto, que a discriminação social a partir da condição de ter sido escravo continue muito presente nas relações dos agudás entre si ou com os outros grupos sociais.
Todos os “brasileiros” que interroguei ao longo da minha pesquisa afirmaram terem sido apontados e chamados de “escravos” em várias situações da vida cotidiana. É praticamente a regra na escola e no mercado.
No domínio da vida privada, pelo contrário, explica o historiador François de Medeiros, “há um acordo tácito para não se falar jamais de ascendência escrava”.
É justamente este acordo que tem servido para consolidar a unidade dos “brasileiros” desde o início da construção da sua nova identidade étnica, embora se possa constatar, no convívio com as famílias agudás, que o estigma da escravatura deve ter um peso na sociedade beninense bem maior do que aparenta.
Os antigos escravos que retornaram tinham diferentes origens étnicas e só estavam unidos pelo passado comum vivido no Brasil.
Em outras palavras, o que os unia era a memória comum de uma experiência social vivida.
Esta memória se traduzia por uma prática de vida, uma maneira de ser e sobretudo por uma qualificação profissional de acordo com os novos parâmetros culturais e econômicos europeus que se impunham cada vez mais no país.
Eles usavam sobrenomes de branco e tinham como modelo a cultura dos brancos adquirida no Brasil.
Essa cultura foi um grande trunfo e lhes permitiu se associarem aos negreiros baianos nas atividades econômicas mais modernas.
Estas atividades, primeiramente baseadas no tráfico de escravos, evoluíram rumo a um comércio internacional e local mais variado, bem como à produção e exploração de recursos locais, como o óleo de palma ou dendê.
Para o conjunto da sociedade, eles tinham “maneiras de branco”, eles se diziam católicos e falavam português.
Seu número - aumentado pelos escravos nativos a seu serviço - foi se tornando mais expressivo e, em consequência, eles foram adquirindo progressivamente um peso maior na demografia da região.
Eles formavam entre si uma comunidade, na qual os primeiros brancos e seus descendentes mestiços eram uma espécie de elite.
Durante a segunda metade do século XIX, eles constituíram uma sociedade à parte, basicamente endogâmica, e construíram uma identidade social assimilada à dos primeiros brasileiros.
Esta identidade se reproduzia também por meio da religião - eles eram basicamente católicos, apesar da mistura com os cultos vodus - e da instrução escolar.
Eles criaram escolas onde todas as crianças, meninos e meninas, aprendiam a ler e escrever em português, como observou o padre Borghero, da Missão Africana de Lyon, enquanto que os súditos de Abomé eram proibidos de frequentar as salas.
Os agudás - neste momento compostos pelos descendentes de negreiros, pelos escravos retornados, seus descendentes e seus escravos - estão na origem de praticamente toda atividade econômica moderna e da penetração da cultura ocidental na região.
Aliás, eles representavam na época o futuro, já que a cultura europeia - ou seja, suas “maneiras de branco” - acabaram por se impor a todos.
Se examinarmos mais de perto a cultura agudá deste segundo momento, verificamos que ela é diferente daquela dos primeiros brasileiros.
Ela é diferente em si, mas é, sobretudo a sua função social que muda.
Os negreiros baianos eram brancos, portanto naturalmente diferentes dos nativos, de modo que eles tinham um lugar próprio na sociedade autóctone.
Este lugar era assegurado pela sua aliança econômica com o rei do Daomé e expresso simbolicamente pelo papel do Chachá e de outros cabeceiras brasileiros na estrutura de poder em exercício.
Os antigos escravos retornados, ao contrário, foram obrigados a inventar um lugar para si nesta sociedade que não os aceitava.
Para ela, eles eram ao mesmo tempo aqueles que já tinham sido expulsos - vendidos como escravos - e estrangeiros - já que, ainda por cima, voltaram completamente diferentes, com “maneiras de branco”.
A construção de uma nova identidade social a partir da memória do tempo vivido no Brasil foi para eles o meio de se inserirem nesta sociedade, no mesmo lugar que já tinha sido estabelecido para os brancos.
“A noção de 'estrangeiro' - como explica Meillassoux (op. cit., p. 105) - é comum a todas as populações africanas.
Geralmente é oposta à noção de 'homem', ou seja, de 'cidadão', de 'patrício', a pessoa provida de todas as prerrogativas sociais no meio considerado. (..)
O estrangeiro deve se aliar a um protetor, seu avalista e sua 'testemunha' na sociedade onde ele penetra, laço prévio que permitirá o estabelecimento de todos os outros.
Na falta deste aval, na solidão, o estrangeiro está fadado à servidão.
“Na situação em análise, é exatamente esta identidade “brasileira”, já avalizada pelo rei Guêzo (por intermédio de seu pacto com Dom Francisco) e por outros potentados, que garante os antigos escravos retornados e confere eficácia à sua estratégia de inserção social.
Eles tornam-se de fato agudás, mas não exatamente como os outros.
É verdade que eles tinham seus senhores como modelos e tinham assimilado grosseiramente, a cultura deles, que era aproximadamente a dos primeiros agudás, mas eles tinham também trazido para a África certa cultura desenvolvida no Brasil pelas pessoas do povo e pelos próprios escravos.
Foi assim que, afora a arquitetura e a representação de si, os indicadores de identidade “brasileira” mais visível remontam a práticas mais ligadas aos escravos do que a seus senhores no Brasil.
É o caso da feijoada (originalmente um prato da senzala, antes de se transformar em prato nacional brasileiro), da festa do Nosso Senhor do Bonfim (primeiramente uma festa dos africanos e crioulos da Bahia, antes de se tornar motivo de devoção de todo um povo) e do folguedo da burrinha (festa popular de caráter folclórico que nunca foi verdadeiramente praticada pelas elites).
A cultura agudá, primeiramente uma cultura à europeia, foi então se enriquecendo de aspectos de uma verdadeira cultura brasileira, tal como ela ia se construindo no próprio Brasil.
A presença colonial francesa, impondo “maneiras de branco” a todo o país, sustentou de certa maneira a opção cultural desta massa de africanos genéricos retornados do Brasil.
Aqueles que tinham partido como escravos voltaram como senhores, ou seja, portadores da cultura que se impunha no país.
É neste momento que a oposição entre as noções de “civilização / modernidade” e de “primitivismo / selvageria” adquire novos contornos no jogo de inserção dos antigos escravos na sociedade local.
E, assim, chegamos ao terceiro momento importante para compreendermos a identidade agudá no Benin, o período atual.
Nos nossos dias, a memória do tempo vivido no Brasil cedeu lugar à memória das realizações feitas no Benin.
Da mesma forma que a primeira memória teve como função permitir a inserção destes escravos retornados na sociedade local, a segunda teve também uma função social precisa.
Na realidade, a oposição “escravos, gente importada / selvagens” continua na ordem do dia da interação social. É a partir da memória das suas realizações (“nós fizemos tudo neste país...”) que os “brasileiros” - excluídos de ofício enquanto escravos - defendem a legitimidade de seu lugar na sociedade beninense atual.
As relações entre os agudás e a administração francesa conheceram várias configurações.
Os “brasileiros” foram primeiramente aliados dos franceses, que os utilizaram como intermediários em relação aos autóctones.
Desde o primeiro momento, quando da instalação do protetorado de Porto Novo, em 1861, eles apoiaram decididamente a França contra a Grã-Bretanha (Costa e Silva, 1989:61-2).
As grandes famílias de Porto Novo, por exemplo, chegaram a participar diretamente, ao lado dos franceses, do esforço de guerra contra Behanzin.
Ignacio Paraíso, o mais importante agudá de Porto Novo, foi o único africano conseguir assento no conselho da Colônia desde a sua instalação.
Vários outros “brasileiros” foram diretamente empregados pela administração francesa em vários níveis (Sanvi, 1977).
De certo modo, os “brasileiros” vivem ainda hoje este papel de intermediários, com pequenas variações.
De fato, eles não podem assumir plenamente sua condição de agudá porque eles estabeleceram alianças com outros grupos étnicos através dos casamentos, o que os leva a uma situação de integração no seio das grandes famílias extensas, à africana.
Daí sua nova condição de intermediários.
Entretanto, na medida em que os franceses se assenhoraram do país, os “brasileiros” foram sendo progressivamente alijados das atividades economicamente mais rentáveis.
Foi o caso primeiramente do comércio atacadista e pouco depois do comércio varejista, ambos colocados sob o monopólio das empresas francesas.
Os comerciantes agudás mais sólidos foram assim levados à bancarrota.
As influências sociais e políticas dos “brasileiros” entram verdadeiramente em declínio a partir de 1946, quando as relações políticas e econômicas no Benin mudam radicalmente em função do novo sistema de representação política na Assembleia Territorial e na Assembleia Nacional francesa.
É neste momento, como explica o historiador beninense Karl Emmanuel Augustt, 12 que “os 'brasileiros' e os mestiços em geral, considerados como assimilados à administração colonial, são desalojados do poder”.
Esta tendência se acentuou ainda mais por ocasião da independência, quando os agudás, que já eram tradicionalmente considerados estrangeiros, foram então assimilados pelos beninenses aos franceses como colonizadores.
“Eles são acusados de terem ajudado o branco, eles se colocaram desde o começo do lado do branco”, resume outro historiador do Benin, o Prof. Adrien Djivo.
Karin Urbain da Silva, o cônsul honorário do Brasil, por sua vez, precisa que naquele momento houve um grande “acerto de contas” contra os “brasileiros”, que durou até 1972.
Ele se refere ao regime marxista do General Kérekou, quando os agudás foram de novo discriminados, e desta vez assimilados à burguesia.
A despeito da participação de algumas personalidades na nomenclatura do regime, os “brasileiros” sustentam que foram praticamente banidos da vida pública neste período, “vítimas da mesma fúria anticolonialista que tentou igualmente eliminar as chefias tradicionais.”
Ao processo de democratização instalado em 1989 no Benin corresponde um movimento de revalorização das chefias tradicionais, bem como dos cultos vodus e demais manifestações religiosas.
Um exemplo disto é o festival internacional das artes e das culturas voduns “Ouidah 92”, que teve lugar em janeiro de 1993 (Tall, 1995a e 1995b), e a instituição de um dia nacional do culto vodu, a ser comemorado justamente no mês de janeiro.
A entronização de Honoré de Souza como Chachá VIII em outubro de 1995, vinte e seis anos depois da morte do seu antecessor, não deixa de se inscrever neste movimento que visa a valorização do peso político dos chefes tradicionais, entre os quais o Chachá.
A análise do processo de construção da identidade étnica dos agudás no Benin nos permite compreender como eles se inscreveram entre os principais atores da transição entre as sociedades tradicionais e a constituição de um estado “moderno”.
É nessa perspectiva que devemos, em minha opinião, avaliar a amplitude da sua contribuição no domínio cultural, econômico e social.
O principal aspecto a se destacar é que a bricolagem de uma nova identidade étnica permitiu a inserção social dos antigos escravos retornados na qualidade de cidadãos de plenos direitos.
Na verdade, essa inserção foi possível de uma parte porque a sociedade no seu conjunto estava em processo de evolução no sentido da própria cultura trazida por eles, e, de outra, porque a admissão destes excluídos era absolutamente necessária para tornar possível e mais efetiva esta evolução.
Os agudás primeiramente foram os intermediários entre as sociedades tradicionais e a cultura ocidental, para tornarem-se logo os intérpretes dos autóctones junto ao poder colonial e inversamente.
Misturados e imbricados com as sociedades tradicionais por meio do casamento, sempre a cavalo entre várias culturas, eles têm desempenhado ainda o papel de intermediários no interior dos diferentes grupos étnicos autóctones, inscrevendo-se sempre como um dos principais atores do processo de construção de um Benin moderno.


Fonte: PDF  Agudás - os “brasileiros” do Benin * 
de Milton Guran
Jornalista, doutor em Antropologia (EHESS/França – 1996) e mestre em Comunicação Social (UnB – 1992), pesquisador  associado  do Centro de  Estudos  Afro-Asiáticos  da Universidade Cândido Mendes (RJ), e coordenador de pesquisa e professor do Curso de Comunicação da Universidade Gama Filho (RJ).