No início dos anos sessenta Vinicius de Moraes foi
presenteado pelo baiano Carlos Coqueijo Costa com um exemplar do LP Sambas de
Roda e Candomblés da Bahia, disco esse que impressionou profundamente o poeta
descortinando para ele uma vertente da música popular que ele ainda não havia
descoberto. Vinicius então mostra o disco a Baden Powell seu parceiro mais
constante na ocasião e este também se encanta. Em 1962 Baden visita a Bahia
para apresentar um show com Silvia Teles no Country Club, familiariza-se com
artistas e intelectuais baianos, demonstra seu interesse pelas tradições afro
baianas e acaba sendo apresentado ao capoeirista Canjiquinha que o leva a
terreiros, rodas de capoeira e o mais importante interpreta para ele os
cânticos e sons do candomblé. Baden fica fascinado, não propriamente pelo
sentido místico do que vira, mas sim pela beleza das harmonias do que ouvira.
Ao se reencontrar com Vinicius compõe o samba Berimbau e
resolvem iniciar uma série de canções sobre a cultura afro brasileira. Nessa
época Baden Powell estava estudando canto gregoriano com o maestro Moacyr
Santos e percebeu que eles tinham semelhança com os cânticos afros que havia
ouvido na Bahia e inspirando-se nessas duas influencias resolve então compor
uma série de temas mesclando-os com a batida do samba, o resultado é esplendido
e de grande beleza melódica, surgindo assim uma nova modalidade musical, os
afro sambas no dizer de Vinicius de Moraes e que seria uma característica
inconfundível na obra musical de Baden.
Passados os momentos de estudo e assimilação da temática os
dois parceiros estavam prontos para iniciar a realização das canções e assim
surge Canto de Ossanha, Canto de Xangô, Bocoché, Canto de Iemanjá, Tempo de
amor, Canto do caboclo Pedra Preta, Tristeza e solidão e Lamento de Exu. Findo
o trabalho partiram então para a gravação das músicas num LP intitulado de Os
Afros Sambas, produzido por Roberto Quartin dono da etiqueta Forma e com
arranjos de Guerra Peixe. Disco antológico ele passa a história da música
brasileira como sendo o primeiro trabalho em que se misturam instrumentos
típicos do candomblé, atabaques, bongô, agogô e afoxé com outros da música
tradicional como flauta, violão, sax, bateria e contrabaixo. Gravado nos dias
3, 4, 5 e 6 de janeiro de 1966, o disco conta com a participação do Quarteto em
Cy e com um coro misto formado por amadores ligados por amizade aos autores, aliás,
como bem definiu Vinicius, um coro da amizade, pois a intenção apesar dos
arranjos elaborados era dar um tratamento simples, despojado e espontâneo a
gravação. Nesse coro estão presentes Eliana Sabino, filha do escritor Fernando
Sabino, Bety Faria, iniciando sua carreira artística no teatro e na dança,
Tereza Drumond, namorada de Baden, Nelita, então esposa de Vinicius, Dr. César
Augusto Parga Proença, psiquiatra e o medico Otto Gonçalves Filho.
Apesar de já estar definitivamente inserido como um dos mais
importantes discos da música popular brasileira, o comentário de Vinicius de
Moraes na contra capa do LP é mais elucidativo do que qualquer outra observação
que se queira dar ao trabalho: Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia
e, em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo
sincretismo: carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro
brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal (...) nunca os
temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e
riqueza rítmica (...) é esta sem dúvida a nova música brasileira e a última
resposta que da o Brasil, esmagadora à mediocridade musical em que se atola o
mundo. E não digo na vaidade de ser letrista dos mesmos; digo-o em consideração
a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um
tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em
direção ao seu patético apelo.
Palavras proféticas as do poeta, pois, parece-nos cada vez
mais distante e difícil produzirmos obras tão magníficas em função da mediocridade
musical em que se atola o mundo.
Luiz Américo Lisboa Junior
Músicas:
01- Canto de Ossanha
02- Canto de Xangô
03- Bocoché
04- Canto de Iemanjá
05- Tempo de amor
06- Canto do caboclo
07- Tristeza e solidão
08- Lamento de Exu
Músicas e letras da autoria de Baden e Vinícius
Os Afrosambas
Ficha Técnica
Produção e direção artística:
Roberto Quartin e Wadi Gebara
Técnico de gravação: Ademar Rocha
Contracapa: Vinicius de Moraes
Fotos: Pedro de Moraes
Capa: Goebel Weyne
Arranjos e regência: Maestro Guerra Peixe
Vocais: Vinicius de Moraes, Quarteto em Cy e Coro Misto
Sax tenor: Pedro Luiz de Assis
Sax barítono: Aurino Ferreira
Flauta: Nicolino Cópia
Violão: Baden Powell
Contrabaixo: Jorge Marinho
Bateria: Reisinho
Atabaque: Alfredo Bessa
Atabaque pequeno: Nelson Luiz
Bongô: Alexandre Silva Martins
Pandeiro: Gilson de Freitas
Agogô: Mineirinho Afoxé: Adyr Jose Raimundo
Os Afro-Sambas
Baden Powell e Vinícius de Moraes produziram juntos uma
safra musical de primeira qualidade, regada a candomblé e uísque escocês.
por Marcelo Xavier
Diz a lenda que tudo começou na boate Arpége, no Leme, Zona
Sul do Rio. O poeta Vinícius de Moraes foi a esta conhecida casa noturna dos
tempos da saudosa boemia bem vestida das noites cariocas do tempo da Bossa Nova
prestigiar o velho amigo, Antônio Carlos Jobim, quando descobriu, pálido de
espanto, o talento jovem e ligeiramente desconhecido de um exímio violonista de
Varre-e-Sai, que atendia pelo curioso nome de Baden Powell de Aquino, e que
fazia algum sucesso pela voz de Lúcio Alves, com o seu Samba Triste, em
parceria com Billy Blanco.
O poetinha ficou impressionado com o estro do rapaz. Vi
aquele molequinho entrar para tocar com a orquestra era o Badeco contou, certa
vez. Como se não bastasse a qualidade do rapaz como intérprete, impressionava
ao então embaixador brasileiro em Montevidéu o ecletismo do moço, que ia de My
Funny Valentine a Estúpido Cupido. Então o célebre autor do Operário em
Construção fulminou o garoto com a proposta de fecharem ali mesmo uma parceria
musical. O violonista ficou tão assustado com aquele convite à queima-roupa
que, na primeira oportunidade, sumiu do mapa.
Outras lendas dão conta que Baden e Vinícius se conheceram
através de Silvinha Telles, na boate Jirau; outros afirmam que foi através de
um amigo comum, o empresário Nilo Queiroz, que reuniu a dupla no seu apartamento,
na Avenida Atlântica. Depois de tocar quase toda a obra de Villa Lobos no
pinho, o poeta lhe fez o pedido. Apesar de fortuito, como são todos os enlaces
(a vida é a arte do encontro), a verdade é que daquela parceria saiu um grande
cancioneiro, que compreende pelo menos cerca de cinquenta números, que vai
desde Berimbau e Samba em Prelúdio, desde então clássicos da Bossa, até a série
de músicas inspiradas no folclore afro-brasileiro, que foi tardiamente reunida
em um disco conceitual, em 1966, pelo mítico selo Forma, de Roberto Quartin,
sob o singelo nome de Os Afro-sambas.
Convite aceito, Badeco se mudou para a casa de Vinícius, e
produziram uma safra inicial de vinte e cinco canções, tudo regado com o melhor
uísque escocês. Daqueles serões no Parque Guinle, saíram sucessos como Consolação,
O Astronauta, Formosa (gravada por Cyro Monteiro), Você sobrinho de Nonô, Só
Por Amor (esta gravada por Odette Lara pela Elenco), Samba da Bênção e Tempo de
Amor (ou o Samba do Veloso).
Mas e os Afro-sambas?
Pouco antes de travar conhecimento do Baden, o poetinha
ganhou um disco, intitulado Sambas de Roda e Candomblés da Bahia. Em pouco
tempo, aquele despretensioso bolachão transformaria o criador da Balada das
Arquivistas e do Orfeu da Conceição no branco mais preto do Brasil, na linha
direta de Xangô. Aqueles temas baianos o impressionaram, ao mesmo tempo em que
o próprio Baden rumava a este mesmo caminho, quando fora apresentado ao
capoeirista Canjiquinha que conduziria Badeco a terreiros, rodas de capoeira ao
mesmo tempo em que lhe apresenta os sagrados cânticos do candomblé. O poeta se
assomara pelo místico; Baden, pelas novas harmonias.
Haig & Haig - À parte, naqueles três meses, estiveram
enfurnados compondo e secando vinte caixas de uísque Haig (trazidas pela mala
diplomática). O ciclo de canções temáticas eram o amálgama daquele estado de
transe místico provocado pelo porre, mais o exótico Samba de Roda e Candomblés
da Bahia (presente de Carlos Coqueijo, amigo do poeta) e a influência do
maestro Moacyr Santos (tu que não és um, és tantos, como diz o Samba da Bênção),
que era professor do violonista. Após muito ouvirem e assimilarem os temas,
eles começaram a compor. Todas vinham de parto normal, bonitas e risonhas:
Bocochê, Canto de Xangô, Canto de Iemanjá, Tempo de Amor, Lamento de Exu, Canto
do Caboclo Pedra Preta, Tristeza e Solidão, Berimbau e o Canto de Ossanha
(certamente é o mais conhecido, e foi lançado em 1966 por Elis Regina no seu
programa O Fino da Bossa, depois lançada em compacto, no mesmo ano).
Contudo, o projeto do álbum, com a série de temas afro, ao
contrário das demais canções, que logo se tornariam standards da MPB, foi parar
na gaveta. Só quatro anos após o encontro etílico-musical no Parque Guinle é
que esse ciclo seria registrado em disco pela Forma, de Roberto Quartin. A
Forma era um selo pequeno (como a Elenco), mas os álbuns eram sofisticados ao
extremo, assim como os lançamentos, quase que escolhidos a dedo antes, a
gravadora havia lançado Eumir Deodato (Inútil Paisagem), Bossa Três (Novas
Estruturas) e Moacy Santos (o revolucionaríssimo Coisas). Agora pretendia
entronizar a música de Baden e Vinícius.
Em estúdio, Quartin chamou Guerra Peixe para os arranjos,
teve a primazia de gravar em disco todos os instrumentos característicos do
candomblé (afoxé, agogô, atabaques) com os do samba tradicional. A despeito do
intenso zelo na composição das músicas, o registro das canções ganhou um
espírito despojado: parece todo ele um registro caseiro e espontâneo (mais
tarde, Baden Powell renegaria esta gravação, alegando justamente o fato de que
a produção soa precária demais), que lhe empresta uma sonoridade única.
Para a sessão, produzida em janeiro de 1966, Baden e
Vinícius convidaram o Quarteto em Cy e um grupo de amigos, ou melhor, dizendo,
de um coro de músicos amadores. Compõem o grupo Nelita e Teresa Drummond,
respectivamente a então esposa do poeta e a namorada de Badeco. Integram a
entouràge vocal ainda Eliana Sabino (filha do escritor), Otto Gonçalves Filho e
César Proença, amigos da intrépida dupla, e a iniciante atriz Betty Faria.
O disco - Em Canto de Ossanha, Vinícius murmura os versos
com tom de súplica, acompanhado do violão, da marcação do aro da bateria e do
afoxé, e de Betty Faria na resposta, e dos solos de sax barítono e tenor. O
coro entra no refrão, junto com o pandeiro. Canto de Xangô tem um tema simples,
mas que vai sendo desenvolvido por todo o corpo de músicos, e vai crescendo ao
longo dos seus seis minutos. Vinícius é quem canta, acompanhado do Quarteto em
Cy. Destaque maior para a percussão e a exposição do tema, feita por Baden. Tristeza
e Solidão, por sua vez, está mais dentro do espírito da Bossa, é certamente a
mais bonita do disco, sem contar o diálogo entre a voz sumida de Vinícius os
desenhos vocais do Quarteto.
Tempo de Amor, samba tradicional, com grande desempenho de
Badeco ao violão, enquanto o baterista Reizinho castiga os couros. Instrumental,
a lírica Lamento de Exu é outro belo momento do disco, e traz Baden solitário,
acompanhado ao longe por atabaques, e por Cybele entoando a melodia. Já Canto
do Caboclo Pedra Preta é o afro-samba mais afeito ao rótulo, tanto em letra
quanto em música. Vinícius apresenta o tema sozinho, depois todos o acompanham,
com a percussão em primeiro plano.
Novo sincretismo - Produção excelente, em número e
qualidade, embora esteja devidamente integrada ao espírito carioca do samba que
a Bossa Nova catalisou à sua maneira. Ou seja, a despeito do forte apelo dos
temas folclóricos, os Afro-sambas não deixam de ser um produto do que Powell e
Vinícius queriam traduzir, isto é, ali se encontra a visão particular do que
eles assimilaram e traduziram como tal. Nesse sentido, o poeta explica, no
texto da contracapa do disco, que as antenas de Baden lhe permitiram o novo
sincretismo de carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé
afro-brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal. Noutro
trecho, ele diz que nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com
tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica.
Sobre isso, é importante o registro que, talvez desde Na Pavuna
(com Almirante, em 1930), não se fazia uma gravação com tantos instrumentos
rústicos de percussão (atabaques, bongôs, agogôs, afoxé, etc.). Outra
curiosidade é que as antenas de Baden só realmente travariam contato com as raízes
afro-brasileiras de fato quando o violonista finamente foi à Bahia, onde passou
seis meses e, de lá, voltava com outro sucesso, Lapinha, esta, por sua vez,
feita sob outra parceria: a de Paulo César Pinheiro.
No entanto, o grande corolário dos Afro-sambas e do encontro
do violonista e do poeta foi que, depois daqueles noventa dias, a vida de ambos
mudaria para sempre: Badeco deixava de ser aquele modesto garoto de subúrbio,
que discretamente tocava no conjunto de Ed Lincoln, e dava as suas anônimas
canjas no Plaza para se tornar um músico de renome internacional. Já o outrora
versejador místico e diplomata andava a passos firmes rumo a uma carreira
(muitos não sabem, mas o bissexto Vinícius estreou em disco em 1932, com Loura
ou Morena em parceria com os Irmãos Tapajós) como compositor popular.