segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Os Afro Sambas


No início dos anos sessenta Vinicius de Moraes foi presenteado pelo baiano Carlos Coqueijo Costa com um exemplar do LP Sambas de Roda e Candomblés da Bahia, disco esse que impressionou profundamente o poeta descortinando para ele uma vertente da música popular que ele ainda não havia descoberto. Vinicius então mostra o disco a Baden Powell seu parceiro mais constante na ocasião e este também se encanta. Em 1962 Baden visita a Bahia para apresentar um show com Silvia Teles no Country Club, familiariza-se com artistas e intelectuais baianos, demonstra seu interesse pelas tradições afro baianas e acaba sendo apresentado ao capoeirista Canjiquinha que o leva a terreiros, rodas de capoeira e o mais importante interpreta para ele os cânticos e sons do candomblé. Baden fica fascinado, não propriamente pelo sentido místico do que vira, mas sim pela beleza das harmonias do que ouvira.
Ao se reencontrar com Vinicius compõe o samba Berimbau e resolvem iniciar uma série de canções sobre a cultura afro brasileira. Nessa época Baden Powell estava estudando canto gregoriano com o maestro Moacyr Santos e percebeu que eles tinham semelhança com os cânticos afros que havia ouvido na Bahia e inspirando-se nessas duas influencias resolve então compor uma série de temas mesclando-os com a batida do samba, o resultado é esplendido e de grande beleza melódica, surgindo assim uma nova modalidade musical, os afro sambas no dizer de Vinicius de Moraes e que seria uma característica inconfundível na obra musical de Baden.
Passados os momentos de estudo e assimilação da temática os dois parceiros estavam prontos para iniciar a realização das canções e assim surge Canto de Ossanha, Canto de Xangô, Bocoché, Canto de Iemanjá, Tempo de amor, Canto do caboclo Pedra Preta, Tristeza e solidão e Lamento de Exu. Findo o trabalho partiram então para a gravação das músicas num LP intitulado de Os Afros Sambas, produzido por Roberto Quartin dono da etiqueta Forma e com arranjos de Guerra Peixe. Disco antológico ele passa a história da música brasileira como sendo o primeiro trabalho em que se misturam instrumentos típicos do candomblé, atabaques, bongô, agogô e afoxé com outros da música tradicional como flauta, violão, sax, bateria e contrabaixo. Gravado nos dias 3, 4, 5 e 6 de janeiro de 1966, o disco conta com a participação do Quarteto em Cy e com um coro misto formado por amadores ligados por amizade aos autores, aliás, como bem definiu Vinicius, um coro da amizade, pois a intenção apesar dos arranjos elaborados era dar um tratamento simples, despojado e espontâneo a gravação. Nesse coro estão presentes Eliana Sabino, filha do escritor Fernando Sabino, Bety Faria, iniciando sua carreira artística no teatro e na dança, Tereza Drumond, namorada de Baden, Nelita, então esposa de Vinicius, Dr. César Augusto Parga Proença, psiquiatra e o medico Otto Gonçalves Filho.
Apesar de já estar definitivamente inserido como um dos mais importantes discos da música popular brasileira, o comentário de Vinicius de Moraes na contra capa do LP é mais elucidativo do que qualquer outra observação que se queira dar ao trabalho: Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal (...) nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica (...) é esta sem dúvida a nova música brasileira e a última resposta que da o Brasil, esmagadora à mediocridade musical em que se atola o mundo. E não digo na vaidade de ser letrista dos mesmos; digo-o em consideração a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo.
Palavras proféticas as do poeta, pois, parece-nos cada vez mais distante e difícil produzirmos obras tão magníficas em função da mediocridade musical em que se atola o mundo.
Luiz Américo Lisboa Junior

Músicas:

01- Canto de Ossanha
02- Canto de Xangô
03- Bocoché
04- Canto de Iemanjá
05- Tempo de amor
06- Canto do caboclo
07- Tristeza e solidão
08- Lamento de Exu

Músicas e letras da autoria de Baden e Vinícius

Os Afrosambas

Ficha Técnica

Produção e direção artística:
Roberto Quartin e Wadi Gebara
Técnico de gravação: Ademar Rocha
Contracapa: Vinicius de Moraes
Fotos: Pedro de Moraes
Capa: Goebel Weyne
Arranjos e regência: Maestro Guerra Peixe
Vocais: Vinicius de Moraes, Quarteto em Cy e Coro Misto
Sax tenor: Pedro Luiz de Assis
Sax barítono: Aurino Ferreira
Flauta: Nicolino Cópia
Violão: Baden Powell
Contrabaixo: Jorge Marinho
Bateria: Reisinho
Atabaque: Alfredo Bessa
Atabaque pequeno: Nelson Luiz
Bongô: Alexandre Silva Martins
Pandeiro: Gilson de Freitas
Agogô: Mineirinho Afoxé: Adyr Jose Raimundo 

Os Afro-Sambas

Baden Powell e Vinícius de Moraes produziram juntos uma safra musical de primeira qualidade, regada a candomblé e uísque escocês.
por Marcelo Xavier
Diz a lenda que tudo começou na boate Arpége, no Leme, Zona Sul do Rio. O poeta Vinícius de Moraes foi a esta conhecida casa noturna dos tempos da saudosa boemia bem vestida das noites cariocas do tempo da Bossa Nova prestigiar o velho amigo, Antônio Carlos Jobim, quando descobriu, pálido de espanto, o talento jovem e ligeiramente desconhecido de um exímio violonista de Varre-e-Sai, que atendia pelo curioso nome de Baden Powell de Aquino, e que fazia algum sucesso pela voz de Lúcio Alves, com o seu Samba Triste, em parceria com Billy Blanco.
O poetinha ficou impressionado com o estro do rapaz. Vi aquele molequinho entrar para tocar com a orquestra era o Badeco contou, certa vez. Como se não bastasse a qualidade do rapaz como intérprete, impressionava ao então embaixador brasileiro em Montevidéu o ecletismo do moço, que ia de My Funny Valentine a Estúpido Cupido. Então o célebre autor do Operário em Construção fulminou o garoto com a proposta de fecharem ali mesmo uma parceria musical. O violonista ficou tão assustado com aquele convite à queima-roupa que, na primeira oportunidade, sumiu do mapa.
Outras lendas dão conta que Baden e Vinícius se conheceram através de Silvinha Telles, na boate Jirau; outros afirmam que foi através de um amigo comum, o empresário Nilo Queiroz, que reuniu a dupla no seu apartamento, na Avenida Atlântica. Depois de tocar quase toda a obra de Villa Lobos no pinho, o poeta lhe fez o pedido. Apesar de fortuito, como são todos os enlaces (a vida é a arte do encontro), a verdade é que daquela parceria saiu um grande cancioneiro, que compreende pelo menos cerca de cinquenta números, que vai desde Berimbau e Samba em Prelúdio, desde então clássicos da Bossa, até a série de músicas inspiradas no folclore afro-brasileiro, que foi tardiamente reunida em um disco conceitual, em 1966, pelo mítico selo Forma, de Roberto Quartin, sob o singelo nome de Os Afro-sambas.
Convite aceito, Badeco se mudou para a casa de Vinícius, e produziram uma safra inicial de vinte e cinco canções, tudo regado com o melhor uísque escocês. Daqueles serões no Parque Guinle, saíram sucessos como Consolação, O Astronauta, Formosa (gravada por Cyro Monteiro), Você sobrinho de Nonô, Só Por Amor (esta gravada por Odette Lara pela Elenco), Samba da Bênção e Tempo de Amor (ou o Samba do Veloso).
Mas e os Afro-sambas?
Pouco antes de travar conhecimento do Baden, o poetinha ganhou um disco, intitulado Sambas de Roda e Candomblés da Bahia. Em pouco tempo, aquele despretensioso bolachão transformaria o criador da Balada das Arquivistas e do Orfeu da Conceição no branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô. Aqueles temas baianos o impressionaram, ao mesmo tempo em que o próprio Baden rumava a este mesmo caminho, quando fora apresentado ao capoeirista Canjiquinha que conduziria Badeco a terreiros, rodas de capoeira ao mesmo tempo em que lhe apresenta os sagrados cânticos do candomblé. O poeta se assomara pelo místico; Baden, pelas novas harmonias.
Haig & Haig - À parte, naqueles três meses, estiveram enfurnados compondo e secando vinte caixas de uísque Haig (trazidas pela mala diplomática). O ciclo de canções temáticas eram o amálgama daquele estado de transe místico provocado pelo porre, mais o exótico Samba de Roda e Candomblés da Bahia (presente de Carlos Coqueijo, amigo do poeta) e a influência do maestro Moacyr Santos (tu que não és um, és tantos, como diz o Samba da Bênção), que era professor do violonista. Após muito ouvirem e assimilarem os temas, eles começaram a compor. Todas vinham de parto normal, bonitas e risonhas: Bocochê, Canto de Xangô, Canto de Iemanjá, Tempo de Amor, Lamento de Exu, Canto do Caboclo Pedra Preta, Tristeza e Solidão, Berimbau e o Canto de Ossanha (certamente é o mais conhecido, e foi lançado em 1966 por Elis Regina no seu programa O Fino da Bossa, depois lançada em compacto, no mesmo ano).
Contudo, o projeto do álbum, com a série de temas afro, ao contrário das demais canções, que logo se tornariam standards da MPB, foi parar na gaveta. Só quatro anos após o encontro etílico-musical no Parque Guinle é que esse ciclo seria registrado em disco pela Forma, de Roberto Quartin. A Forma era um selo pequeno (como a Elenco), mas os álbuns eram sofisticados ao extremo, assim como os lançamentos, quase que escolhidos a dedo antes, a gravadora havia lançado Eumir Deodato (Inútil Paisagem), Bossa Três (Novas Estruturas) e Moacy Santos (o revolucionaríssimo Coisas). Agora pretendia entronizar a música de Baden e Vinícius.
Em estúdio, Quartin chamou Guerra Peixe para os arranjos, teve a primazia de gravar em disco todos os instrumentos característicos do candomblé (afoxé, agogô, atabaques) com os do samba tradicional. A despeito do intenso zelo na composição das músicas, o registro das canções ganhou um espírito despojado: parece todo ele um registro caseiro e espontâneo (mais tarde, Baden Powell renegaria esta gravação, alegando justamente o fato de que a produção soa precária demais), que lhe empresta uma sonoridade única.
Para a sessão, produzida em janeiro de 1966, Baden e Vinícius convidaram o Quarteto em Cy e um grupo de amigos, ou melhor, dizendo, de um coro de músicos amadores. Compõem o grupo Nelita e Teresa Drummond, respectivamente a então esposa do poeta e a namorada de Badeco. Integram a entouràge vocal ainda Eliana Sabino (filha do escritor), Otto Gonçalves Filho e César Proença, amigos da intrépida dupla, e a iniciante atriz Betty Faria.
O disco - Em Canto de Ossanha, Vinícius murmura os versos com tom de súplica, acompanhado do violão, da marcação do aro da bateria e do afoxé, e de Betty Faria na resposta, e dos solos de sax barítono e tenor. O coro entra no refrão, junto com o pandeiro. Canto de Xangô tem um tema simples, mas que vai sendo desenvolvido por todo o corpo de músicos, e vai crescendo ao longo dos seus seis minutos. Vinícius é quem canta, acompanhado do Quarteto em Cy. Destaque maior para a percussão e a exposição do tema, feita por Baden. Tristeza e Solidão, por sua vez, está mais dentro do espírito da Bossa, é certamente a mais bonita do disco, sem contar o diálogo entre a voz sumida de Vinícius os desenhos vocais do Quarteto.
Tempo de Amor, samba tradicional, com grande desempenho de Badeco ao violão, enquanto o baterista Reizinho castiga os couros. Instrumental, a lírica Lamento de Exu é outro belo momento do disco, e traz Baden solitário, acompanhado ao longe por atabaques, e por Cybele entoando a melodia. Já Canto do Caboclo Pedra Preta é o afro-samba mais afeito ao rótulo, tanto em letra quanto em música. Vinícius apresenta o tema sozinho, depois todos o acompanham, com a percussão em primeiro plano.
Novo sincretismo - Produção excelente, em número e qualidade, embora esteja devidamente integrada ao espírito carioca do samba que a Bossa Nova catalisou à sua maneira. Ou seja, a despeito do forte apelo dos temas folclóricos, os Afro-sambas não deixam de ser um produto do que Powell e Vinícius queriam traduzir, isto é, ali se encontra a visão particular do que eles assimilaram e traduziram como tal. Nesse sentido, o poeta explica, no texto da contracapa do disco, que as antenas de Baden lhe permitiram o novo sincretismo de carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal. Noutro trecho, ele diz que nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica.
Sobre isso, é importante o registro que, talvez desde Na Pavuna (com Almirante, em 1930), não se fazia uma gravação com tantos instrumentos rústicos de percussão (atabaques, bongôs, agogôs, afoxé, etc.). Outra curiosidade é que as antenas de Baden só realmente travariam contato com as raízes afro-brasileiras de fato quando o violonista finamente foi à Bahia, onde passou seis meses e, de lá, voltava com outro sucesso, Lapinha, esta, por sua vez, feita sob outra parceria: a de Paulo César Pinheiro.
No entanto, o grande corolário dos Afro-sambas e do encontro do violonista e do poeta foi que, depois daqueles noventa dias, a vida de ambos mudaria para sempre: Badeco deixava de ser aquele modesto garoto de subúrbio, que discretamente tocava no conjunto de Ed Lincoln, e dava as suas anônimas canjas no Plaza para se tornar um músico de renome internacional. Já o outrora versejador místico e diplomata andava a passos firmes rumo a uma carreira (muitos não sabem, mas o bissexto Vinícius estreou em disco em 1932, com Loura ou Morena em parceria com os Irmãos Tapajós) como compositor popular.