Todas as vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.
Ana Lins de Guimarães Peixoto Bretas nasceu em Goiás Velho (GO), antiga capital de Goiás, em 20 de agosto de 1889. Era conhecida como Aninha da Ponte da Lapa, mas só muito tempo depois adotou o pseudônimo de Cora Coralina. Menina ainda interessou-se por poesia e romances. Escandalizou a cidade ao fugir, aos 21 anos, com o delegado, casado e muito mais velho do que ela. Viveram no interior de São Paulo e, quando ele enviuvou, casou-se com ela. Voltou para Goiás Velho, depois da morte do marido, e continuou a escrever poemas. Em 1965, aos 75 anos, publicou Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais e começou a ser conhecida, nacionalmente, tornando-se amiga do poeta Carlos Drummond de Andrade, com quem se correspondeu. Para sobreviver, entretanto, já com 70 anos, passou a fazer doces de frutas para vender. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Goiás. Em 1983, foi agraciada pela União Brasileira de Escritores (UBE) com o título de Intelectual do Ano e com o Troféu Juca Pato. Escreveu, ainda, Estórias da Casa Velha da Ponte; Os Meninos Verdes; Meu Livro de Cordel; O Tesouro da Velha Casa; Becos de Goiás e Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. Morreu em Goiânia, em 10 de abril de 1995.
A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.