A dificuldade de ingressar no mercado editorial e colocar seus livros à disposição de um grande público talvez seja a principal causa da reduzida visibilidade de escritores afro-descendentes que, em suas obras, retratam a vida e os valores da comunidade negra brasileira. O conceito de literatura negra é polêmico.
O uso dessa expressão pode ajudar a manter a discriminação.
No âmbito acadêmico, o debate sobre esse tema foi aberto no Brasil por Roger Bastide com a obra “Estudos Afro-Brasileiros”, publicada na década de 1940.
Mais tarde, surgiram trabalhos de outros pesquisadores estrangeiros, como Raymond Sayers (“O Negro na Literatura Brasileira”, 1958) e Gregory Rabassa (“O Negro na Ficção Brasileira”, 1965).
A partir dos anos 80, essa discussão é reaberta no Brasil com o aparecimento de diversos estudos, com destaque para a obra de Zilá Bernd, doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
No livro “Negritude e Literatura na América Latina” (1987), ela critica o estudioso David Brookshaw (“Raça e Cor na Literatura Brasileira”, 1983) por dividir os autores em “brancos” e “negros” que utilizam temática negra.
“Tal divisão, meramente epidérmica, não nos parece satisfatória, até mesmo pela dificuldade em saber, num país mestiço como o Brasil, quem é negro e quem não é.”
Embora admitindo que, à primeira vista, a expressão literatura negra possa remeter a um conceito etnocêntrico, uma vez que a sensibilidade artística não constitui fator inerente a uma dada etnia, Zilá Bernd afirma existir uma literatura negra, que se diferencia das obras que apenas tematizam o negro pela apresentação de um “eu enunciador” que se quer negro.
Com 67 anos de idade, o paulista Oswaldo de Camargo foi um dos poucos escritores que durante as décadas de 1950 e 60 estabeleceram um elo de ligação entre os autores negros da primeira metade do século passado e uma nova fornada surgida no final dos anos 70.
Segundo ele, “essa literatura que o negro produz surge exatamente das experiências particulares dele, mas tem de ser sancionada por um texto literário”.
Por isso, a preocupação com a qualidade do texto não é casual.
Ela decorre do cuidado em evitar certo paternalismo que levou estudiosos a propor critérios específicos na avaliação dos escritores negros e mestiços, substituindo a apreciação da qualidade literária pela oportunidade histórica, proposta que, na opinião de Domício Proença, pode ajudar a manter a discriminação.
Um dos autores negros mais respeitados da geração surgida no Brasil a partir dos anos 1970 é o poeta Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, um paulista nascido em Ourinhos, em 1951.
Ele diz que a caracterização de uma literatura depende muito do ângulo de visão e do interesse do analista e coloca o foco na subjetividade e na ideologia.
“Para mim, literatura negra se identifica pela predominância da experiência subjetiva de ser negro transfigurado em texto”, afirma ele.
Mesmo um levantamento superficial mostra na literatura negra brasileira o amplo predomínio da poesia e a quase absoluta ausência de romances.
Domício Proença afirma que, por ser uma forma extrema e imediatamente mais mobilizadora da emoção e da reflexão do que a prosa, o poema torna-se o espaço ideal para a concretização de textos centrados basicamente na afirmação da identidade cultural, na preocupação com o direito pleno à cidadania.
Já Zilá Bernd afirma que, para a maturação de um romance negro brasileiro, algumas etapas ainda precisam ser vencidas, como o resgate de sua participação na história do Brasil e a definição de sua própria identidade.
Um dos poucos romancistas afro-brasileiros com trânsito pelas grandes editoras é o carioca Joel Rufino dos Santos.
Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele tem dezenas de títulos publicados.
Rufino, no entanto, diz que produz uma literatura culta, impregnada de valores ocidentais, tanto na inspiração quanto no estilo e nos temas, e que nesse sentido sua obra não pode ser classificada como literatura negra.
Ubaldo, no entanto, diz que isso é possível desde que o critério não seja a cor da pele do escritor, uma vez que se considera "branco brasileiro", talvez numa alusão à intensa mestiçagem existente no país.
Aqui no Brasil, uma saída encontrada por muitos escritores negros para furar o bloqueio a eles imposto no meio editorial e fazer suas obras chegarem ao leitor foi a publicação em regime cooperativo.
O grupo assumiu a publicação dos Cadernos, recebeu adesões, mas em seguida sofreu uma ruptura, com a saída de Camargo, Colina e Abelardo, que criticavam principalmente a qualidade do material publicado.
Na avaliação de Oswaldo de Camargo, a formação do Quilombhoje, sobretudo depois do surgimento dos Cadernos Negros, foi uma experiência necessária para que se formasse um coletivo que tornou possível reunir - como acontece até hoje - autores de todos os cantos do país, definindo um método de trabalho que deixou mapeada a maneira de escrever do negro, suas temáticas, suas buscas.
O convite surgiu depois da repercussão que tiveram no meio acadêmico norte-americano os textos de Miriam, Esmeralda Ribeiro e Conceição Evaristo, incluídos na coletânea Fourteen Female Voices, publicada nos Estados Unidos.
Outra experiência documentada nos Cadernos Negros é o trabalho do gaúcho Oliveira Silveira.
Nascido há 61 anos em Rosário do Sul, ele é autor de várias obras, entre as quais a Décima do Negro Peão, em que mostra que o negro foi um dos formadores da tradição gaúcha, trabalhando nas charqueadas desde o século 18, guerreando na Revolução Farroupilha, atuando nas diversas atividades do meio rural daquele estado.
Silveira também assina um texto de apresentação do livro de poemas Miragem de Engenho, escrito pelo professor e radialista baiano Jônatas Conceição da Silva, que tem poemas, contos e ensaios publicados tanto nos Cadernos Negros quanto em coletâneas dentro e fora do Brasil.
Sebastião Uchoa Leite, no artigo “Presença Negra na Poesia Brasileira Moderna”, também publicado na “Revista do Patrimônio Histórico”, utiliza um critério que situaria a maioria dos poetas editados nos Cadernos Negros em uma vertente caracterizada pela atuação militante.
Uchoa destaca ainda um segmento mais recente da poesia negra, formada por autores que se dedicam à recuperação do universo simbólico, ou experiências linguístico-formais, no qual inclui um veterano dos Cadernos Negros, Arnaldo Xavier, que faz um trabalho iconográfico totalmente diferenciado da maioria dos poetas negros de sua geração.
No plano da recuperação da linguagem afro, Uchoa cita o exemplo do baiano Antonio Risério, que transcriou em português o mundo fascinante dos orikis (versos ou poemas destinados a saudar um orixá) da cultura nagô-iorubá. Márcio Barbosa, que atualmente divide com a esposa, Esmeralda Ribeiro, o trabalho de publicar os Cadernos Negros, avalia que, passados 25 anos da criação do Quilombhoje, há maior interesse acadêmico pela literatura negra, com produção de teses e realização de cursos específicos em algumas universidades, como a Federal de Minas Gerais (UFMG).
Apesar disso, os escritores negros ainda trabalham sem recursos, enfrentam dificuldades de mercado e, na maioria das vezes, fazem edições autofinanciadas.
Ele detecta na mídia e nas livrarias um “boicote velado” à produção desses autores.
Cuti concorda que essa lei favorecerá a literatura negra e diz que as editoras já começaram a trabalhar para aproveitar a demanda criada pela exigência legal.