No mundo dos feitiços - Os feiticeiros
Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar.
- Está pensando! - dizem os outros.
De repente, os pobres velhos ingênuos acordam, com um sonho
mais forte nessa confusa existência de pedras animadas e ervas com espírito.
- Xangô diz que eu tenho de fazer sacrifício!
Xangô, o deus do trovão, ordenou no sono, e o opelê, feito
de cascas de tartaruga e batizado com sangue, cai na mesa enodoada para dizer
com que sacrifício se contenta Xangô.
Outros, os mais malandros, passam a existência deitados no
sofá. As filhas-de-santo, prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a
existência, a gente que as vai procurar dá-lhes o supérfluo.
A preocupação destes é saber mais coisas, os feitiços
desconhecidos, e quando entra o que sabe todos os mistérios, ajoelham
assustados e beijam-lhe a mão, soluçando:
- Diz como se faz a cantiga e eu te dou todo o meu dinheiro!
À tarde, chegam as mulheres, e os que por acaso trabalham em
alguma pedreira.
Os feiticeiros conversam de casos, criticam-se uns aos
outros, falam com intimidade das figuras mais salientes, do país, do imperador,
de que quase todos têm o retrato, de Cotegipe, do barão de Mamanguape, dos
presidentes da República.
As mulheres ouvem mastigando obi e cantando melopéas
sinistramente doces.
Essas melopéas são quase sempre as preces, as evocações, e
repetem sem modalidade, por tempo indeterminado, a mesma frase.
Só pelos candomblés ou sessões de grande feitiçaria, em que
os babalaôs estão atentos e os pais-de-santo trabalham dia e noite nas
camarinhas ou fazendo evocações diante dos fogareiros com o tessubá na mão, é
que a vida dessa gente deixa a sua calma amolecida de acassá com azeite-de-dendê.
João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio
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