No mundo dos feitiços - A Casa das Almas
Depois os sacerdotes ergueram-se, reuniram e nós ficamos de
novo sós, enquanto o oceano rugia e, ao longe, tristemente a canzoada ladrava.
- Ainda apanhamos o candomblé, disse Antônio. É preciso que
o babaloxá convide V. S. para o egum...
Noutro dia, pouco mais ou menos à meia-noite, estávamos no
ilê-saim ou casa das almas.
O egum é uma cerimônia quase pública, a que os feiticeiros
convidam certos brancos para presenciar a pantomima do seu extraordinário
poder.
Esses curiosos fetiches, que para fazer o guincho de santo
Ossaim amarram nas pernas bonecas de borracha, com assobio; cujos santos são
uni produto de bebedeiras e de hipnose, têm na evocação dos espíritos a máxima
encenação da sua força sobre o invisível.
Quando morre alguém, quando todos estão diante do corpo, um
dos pretos esconde-se e dá um grito. No meio da confusão geral, então, mudando
a voz, esse negro grita:
Emim, toculoni mopé, cá-um-pé, emim!
Eu que morri hoje, quero que chamem por mim.
Os donos do defunto arranjam o dinheiro para a evocação,
pessoas estranhas ajudam também com a sua quota para aproveitar e saber do
futuro.
O babaloxá não faz o egum enquanto não tem pelo menos
trezentos mil réis. Arranjada a quantia, começa a cerimônia.
Quando entramos na sala das almas, à luz fumarenta dos
candeeiros a cena era estranha.
Havia brancas, meretrizes de grandes rodelas de carmim nas
faces, mulatas em camisa, mostrando os braços com desenhos e iniciais em azul
dos proprietários do seu amor, e negros, muitos negros.
Estes últimos, sentados em roda do assoalho, estavam quase
nus, e algumas negras mesmo inteiramente nuas com os seios pendentes e a
carapinha cheia de banha.
- Por que estão eles assim?
- Para mais facilmente receber o espírito.
Junto à porta do fundo, três negros de vara em punho
quedavam-se estáticos.
Eram os annichans, que faziam guarda ao saluin ou
quarto-dos-espíritos.
Ouvi dentro do saluin um barulho de pratos, de copos
tocados, de garrafas desarrolhadas; um momento pareceu-me ouvir até o estouro
forte do champanha barato.
- Há gente lá dentro?
- As almas. Está-se banqueteando.
O banquete foi pago pelos presentes.
Mas, psiu! Daqui a pouco começarão as cantigas, que ninguém
compreende.
Os africanos inventam nomes para a cena parecer mais
fantástica.
Com efeito, minutos depois, aos primeiros sons dos
atabaques, as negras bradaram:
- Aluá! o espírito! e romperam uma cantiga assustadora e
trôpega.
Anu-ha, a o ry au od á
San-ná-elê-o ou baba
Locá-aló
A porta continuava fechada, mas eu vi surgir de repente um
negro vestido de dominó com os pés amarrados em panos.
Os três annichans ergueram as varas, o dominó macabro
começou a bater a sua no chão, os xeguedês sacudiram-se, e outra cantiga
estalou medrosa:
Lou-â gége ou-rou ó uá
Xó la-ry la-ry lary
Que què oura ô uchô
La-ry la mamau rú nam babá
Quando o santo aos pulos aproximava-se de alguma mulher, ela
recuava bradando com desespero:
- Afapão!
- Vão aparecer as almas, avisou Antônio, a cantiga diz:
Procuramos a alma de Fulano e de Sicrano e não a encontramos dormindo.
Cansamos sem saber o mistério que a envolvia. A alma está
aqui e entrou pela porta do quintal.
- Mas quem é este dominó?
- É Baba-Egum.
As almas têm vários cargos.
O que traz uma gamela chama-se Ala-téorum, o 2.º Opocó-echi,
o 3.º Eguninhansan, e no meio de sete espíritos aparece o invocado.
Entretanto o dominó Baba-Egum batia furiosamente no chão com
a sua vara de marmelo, e no alarido aumentado apareceu aos pulos outro dominó,
o Alabá, que por sua vez também se pôs a bater.
Era o ritual da entrega das almas.
Por fim apareceu Ousaim, enfiado numa fantasia de bebê, de
xadrez variado, com duas máscaras: uma nas costas, outra tapando o rosto.
- Quem é esse?
- O Bonifácio da Piedade, um malandro de cavaignac, que faz
sempre de Eruosaim.
Eruosaim também dançava.
Entre as cantigas, os annichans ergueram de novo as varas, a
porta abriu-se, dois negros ficaram um de cada lado, o atafim, ou confidente, e
o anuxam, secreta.
De dentro saíram mais três dominós cheios de figas e
espelhinhos, com os pés embrulhados nos trapos. As negras aterrorizadas
uivavam, com o amarelo dos olhos virados e os espíritos, naquela algazarra,
pareciam cambalear.
Havia gente porém que os reconhecia.
- Eles fingem os gestos dos mortos, segredou-me Antônio.
Palmas ressoavam estridentes saudando a chegada do
invisível, as varas de marmelo lanhavam o ar e as almas, e naquele círculo
silvante, ao som dos xeguedés e dos atabaques batiam surdamente no chão aos
pulos da dança demoníaca.
João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
Domínio Público - Biblioteca Virtual de Literatura
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