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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Pai grande

As Religiões no Rio - João do Rio
No mundo dos feitiços - As Iauô

No meio do pandemônio vejo surgir o babaloxá com um desses vasos furados em que se assam castanhas, cheio de brasas.
- Que vai ele fazer?
- Cala, cala... é o pai, é o pai grande - balbucia Antônio.
As cantigas redobram com um furor que não se apressa.
São como uma ânsia de desesperado essas cantigas, como a agonia de um mesmo gesto arrancando dos olhos a mesma lâmina de faca, são atrozes!
O babaloxá coloca o cangirão ardente na cabeça da iauô, que não cessa de dançar delirante, insensível, e, alteando o braço com um gesto dominador e um sorriso que lhe prende o beiço aos ouvidos, entorna nas brasas fumegantes um alguidar cheio de azeite-de-dendê.
Ouve-se o chiar do azeite nas chamas, a negra, bem no meio da sala, sacoleja-se num jequedé lancinante, e pela sua cara suada, do cangirão ardente, e que não lhe queima a pele, escorrem fios amarelos de azeite...
Ie-man-já atô cuaô.
continuava a turba.
- Não queimou, não queimou, ele é grande - fez Antônio.
Eu abrira os olhos para ver, para sentir bem o mistério da inaudita selvageria.
Havia uma hora, a negra dançava sem parar; pela face o dendê quente escorria benéfico aos santos.
De repente, porém ela estacou, caiu de joelhos, deu um grande grito.
- Emim oiá bonmim'. - Bradou.
- É o nome dela, o santo disse pela sua boca o nome que vai ter.
A sala rebentou num delírio infernal. O babaloxá gritava, com os olhos arregalados, palavras guturais.
- Que diz ele?
- Que é grande, que vejam como é grande!
Criaturas rojavam-se aos pés do pai, beijando-lhes os dedos, negras uivavam, com as mãos empoladas de bater palmas; dois ou três pretos aos sons dos xequerês sacudiam-se em danças com o santo, e a iauô revirava os olhos, idiota, como se acordasse de uma grande e estranha moléstia.
- Que vai ela fazer agora, Deus de misericórdia! - murmurei saindo.
- Vai trabalhar, pagar no fim de três meses a sua obrigação, ochu meta, dar dinheiro a pai-de-santo, ganhar dinheiro...
- Sempre o dinheiro! - fiz eu olhando a velha casaria.
Antônio parou e disse:
- Não se engana V.S.
E limpando o suor do rosto, o negro concluiu com esta reflexão profunda:
- Neste mundo, nem os espíritos fazem qualquer coisa sem dinheiro e sem sacrifício!
Fomos pela rua estreita com a visão sinistra da pobre mártir aos pulos, dessa cabeça pintada, entre os chocalhos e os atabaques, que dançava e gritava horrendamente...

João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
Domínio Público - Biblioteca Virtual de Literatura
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