Na América portuguesa a dispersão da população estimulou a religiosidade doméstica, acentuando a participação ativa de leigos. A cor da pele e a condição social, por sua vez, separavam brancos e negros.
Reunindo homens de igual categoria e fundadas com finalidade religiosa, as irmandades transformaram-se rapidamente em organizações beneficentes e de auxílio mútuo, onde a proteção aos membros tornou-se papel essencial destas instituições.
Neste contexto as irmandades de negros, legalmente reconhecidas, representaram um espaço múltiplo de religião e cultura, de devoção e sociabilidade.
Se, por um lado, as irmandades não cederam espaço à introdução de outros tipos de cultos, ao menos puderam preservar certos costumes dos africanos e seus descendentes, ainda que reinterpretados, em um ambiente fortemente fiscalizado e controlado pelos poderes temporal e religioso.
As irmandades de negros exerceram uma ação protetora, amparando e defendendo seus membros dos excessos do sistema escravocrata. Espelhos de seu contexto, estas irmandades serviram de palco para a preservação de tradições e valores da cultura africana.
As irmandades, reunião de devotos leigos organizados em torno do culto aos santos padroeiros, constituíram-se como um dos espaços sociais mais importantes da América portuguesa. Em um contexto onde Estado e Igreja mantinham relações umbilicais, difundir a religião católica era obrigação do governo, devendo atingir todos os cidadãos, escravos e índios.
Assim, a constituição de irmandades de negros e pardos permitiu a abertura de brechas para a inclusão de grupos que, de outro modo, nenhum espaço encontrariam na rígida estrutura da sociedade escravista.
Protegidos sob o manto de Na. Sra. do Rosário, S. Benedito, Sta. Efigênia, entre outros oragos, os escravos puderam construir uma nova identidade, mesclando a visão de mundo ancestral com as tradições dos colonizadores.
Essa conquista proporcionou o surgimento de expressões até hoje marcantes para a cultura afro-brasileira.
De todas elas, os funerais e as festas, como as coroações dos Reis Congos, foram as que melhor definiram o modo como os africanos construíram uma imagem pública no novo ambiente cultural.
A forja destas tradições não foi pacífica, encontrando resistências de toda ordem. Muitos de seus traços sucumbiram ao longo do tempo.
Não é sem razão que, das irmandades do Brasil Colonial, apenas as associações negras continuaram tendo papel decisivo, abrigo que foram na conquista de direitos para os afrodescendentes, desde o mais elementar deles, a liberdade.
As irmandades, desde cedo, organizaram-se para arrecadar fundos que eram empregados na compra de alforrias. Mais tarde, durante o Movimento Abolicionista, muitas das decisões eram tomadas secretamente em suas sedes. Por meio deste contexto, o evento valoriza a construção da identidade negra no Brasil e instiga o público a conhecer e refletir sobre sua história.
Na historiografia brasileira e também na portuguesa, ainda são raros os trabalhos sobre a vida associativa, embora a historiografia internacional, com o historiador norte-americano Robert Darnton, professor da Universidade de Princeton, à frente, venha oferecendo nos últimos tempos vários estudos sobre a sociabilidade.
Por isso, Lá vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (século XVIII) livro de Antônia Aparecida Quintão, professora doutora de várias universidades privadas de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (Neinb), vem a calhar num momento em que a sociedade brasileira discute a validade de se adotar cotas para afrodescendentes nas universidades públicas.
Sem querer discutir os prós e os contras da adoção dessa política, a verdade é que uma presença mais significativa de afrodescendentes nas universidades públicas resultará em maior número de trabalhos voltados para a discussão do papel do negro na sociedade brasileira.
E, com certeza, trabalhos de excelente qualidade como este da professora Antônia Quintão, originalmente uma tese de doutorado apresentada em outubro de 1997 ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor doutor Augustin Wernet.
Neste texto, a autora discute o papel das confrarias de pretos e pardos na América portuguesa, mostrando que, ao contrário do que chegaram a sugerir historiadores mais antigos e ainda marcados por preconceitos, o principal sentido dessas irmandades religiosas foi o de dar dignidade ao negro.
Na verdade, como explica a autora em suas conclusões, ao tornar-se confrade, o negro, escravo ou liberto, encontrava um significado para a sua vida, “na medida em que as confrarias possibilitavam o culto aos mortos, estimulavam a solidariedade, garantiam o enterro de seus membros, amparavam materialmente os mais necessitados, levavam alimentos para os que estivessem doentes ou presos, auxiliavam na compra da carta de alforria e realizavam as festas coletivas que representavam no plano simbólico os valores da sociedade setecentista – fortemente hierarquizada e discriminadora”.
Ao longo do tempo, as irmandades, com uma ou outra exceção, nunca foram consideradas como forma de resistência. Por isso, os negros confrades quase sempre foram apresentados de maneira preconceituosa, como se fossem acomodados, passivamente integrados ao sistema escravagista, completamente alheios aos conflitos e tensões sociais. Em outras palavras: seriam “bons escravos”.
O livro da professora Antônia Quintão mostra que em cada situação histórica o homem luta da forma que lhe é possível, provando, com farta documentação de arquivo, que as irmandades elaboravam suas estratégias no contexto da sociedade escravagista em que estavam inseridas.
Um exemplo curioso que a pesquisadora resgatou dos arquivos é o caso do adjunto ou congregação dos pretos minas da nação makii, não só por se tratar de africanos, mas também pela forte resistência que demonstraram, inclusive mantendo termos de sua língua natal. Trata-se de um manuscrito de 1786 e localizado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que reproduz as tensões e os conflitos que marcavam as relações Inter étnicas: os makii não admitiam em sua confraria pessoas pretas de Angola nem crioulos nem cabras ou mestiços.
A princípio, a autora procurou demonstrar que as atividades desenvolvidas por negros e pardos nas irmandades tinham um caráter de protesto racial, uma vez que faziam parte de uma sociedade marcadamente racista.
Em seguida, as fontes consultadas – no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e especialmente os compromissos de irmandades levantados em igrejas do Rio de Janeiro e de Pernambuco – permitiram à historiadora constatar que os negros eram vistos como criminosos, ladrões, feiticeiros, considerados incapazes, perigosos, suspeitos e, a partir daí, passíveis de terem seus bens usurpados.
O exemplo mais bem acabado da situação à que estavam relegadas as classes subalternas, diz a autora, é o da Irmandade do Rosário e São Benedito do Rio de Janeiro.
“O negro era uma presença que incomodava, causava temor e inquietação”, conta a autora, lembrando que as suas reivindicações significavam ameaças e eram vistas como tentativas de desestabilização social.
“É certamente difícil comprovar que a sociedade brasileira é historicamente racista, pois o Brasil gosta de ser e de se mostrar como um país sem preconceitos, tendo elaborado e incorporado o mito da democracia racial, que permanece incontestável justamente por ser mito e apesar dos numerosos exemplos de discriminação racial praticados cotidianamente de uma maneira visível e indiscutível”, diz.
Não foi uma tarefa fácil essa à que Antônia Quintão se entregou. Pesquisar a história das classes subalternas e, particularmente, do negro, é sempre uma missão árdua.
As dificuldades que surgem são as mais inusitadas, como o incêndio que em 1967 destruiu a igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito do Rio de Janeiro, transformando em cinzas documentos fundamentais para o conhecimento da história da população de escravos e forros nos séculos XVII e XVIII.
Essa mesma tragédia emudeceu a história da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, pois boa parte dos documentos estava sob a responsabilidade da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Outra igreja carioca que perdeu boa parte de sua documentação foi a de Nossa Senhora da Lampadosa, a época do alargamento da antiga Rua da Lampadosa, atual Avenida Passos, em 1920.
Por tudo isso, este livro da professora Antônia Quintão é, desde já, um trabalho imprescindível ao historiador que pretende se aventurar nesta seara tão difícil. Seu texto, como foi dito acima, segue uma tendência revisionista da história, contrapondo-se às tendências historiográficas tradicionais que associavam a vida em confraria dos negros a um esquema de controle de vigilância organizado pela Igreja e o Estado.
Ao mostrar que as irmandades não eram o “antiquilombo” urbano, a autora deixa claro, isso sim, que se tratavam de uma forma de resistência das classes subalternas, na qual se imbricavam elementos da classe dominante. Por isso, justifica a autora, muitas vezes, os próprios confrades tinham procedimentos marcados pela contradição e ambiguidade.
De fato, se as irmandades não chegaram a contestar a ordem estabelecida, com certeza, denunciaram as incoerências e reagiram às injustiças de uma sociedade arraigadamente racista, o que a autora mostra por meio de requerimentos e petições dessas confrarias que, em última análise, sempre tiveram como motivação básica o desejo de independência e autonomia.
As confrarias de negros na América portuguesa (artigo) 2005-06-12 e resenha de livro escrita por Adelto Gonçalves Jornalista, doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo