Irmandade
Nascida nas senzalas há cerca de 150 anos, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte tinha o intuito de alforriar negros ou dar-lhes fuga encaminhando-os para o Quilombo do Malaquias, em Terra Vermelha, zona rural da cidade de Cachoeira.
Com a abolição da escravidão, as irmãs aproximaram-se da Igreja, surgindo assim a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte.
Passados quase dois séculos de sua criação, a Irmandade da Boa Morte ainda é uma confraria católica de mulheres negras e mestiças que representam a ancestralidade dos povos africanos escravizados e libertos no Recôncavo Baiano.
A sociedade ainda se mantém ativa e é fechada. Somente as descendentes de escravas com mais de 40 anos podem ingressar nela.
Atualmente, a Irmandade é integrada por cerca de 30 senhoras. Houve um tempo em que esse número chegou a 200.
Embora neguem, são elas que continuam realizando secretamente os mesmos rituais aos deuses africanos dos tempos da escravidão, incluindo aqueles feitos durante a festa da Nossa Senhora da Boa Morte.
Tributo a Maria
Desde 1820, as irmãs se mantêm fiéis na devoção a Nossa Senhora. Anualmente, realizam a festa de Cachoeira, cumprindo uma promessa feita por suas ancestrais nos tempos da escravidão.
O objetivo dessa cerimônia é mergulhar no passado e reviver os tempos do Brasil colonial, do Império e do País independente, mas ainda escravocrata.
É percorrer uma paisagem onde a energia de escravos mortos ou torturados ainda ecoa.
É desvendar aquele que talvez seja o primeiro movimento feminista negro do País.
A Irmandade é uma organização de mulheres negras resistiu que à sua moda e se rebelou contra os sofrimentos impostos pelo regime escravagista.
Resistiu desde a jornada diária de trabalho de 18 horas nas lavouras aos castigos e mutilações, como o corte dos tendões das fujonas, os açoites em público, os grilhões e brasas em seus rostos, a extração e quebra de dentes a frio e o corte de orelhas e da língua daquelas consideradas mais afoitas. Sem falar dos abusos sexuais.
Não é à toa que esse período de mais de 350 anos é um dos capítulos mais sombrios da história das Américas. Mas foi nesse cenário que surgiu a Irmandade da Boa Morte, que é quem até hoje organiza a festa em Cachoeira.
Essa sociedade de mulheres negras e mestiças, escravas e libertas, tinham duas metas principais:
Comprar a carta de alforria para a libertação de maridos, filhos e outros escravos, e preservar os rituais das religiões africanas até então terminantemente proibidos, como o culto dos orixás.
Posteriormente, foi essa organização que fundou a primeira casa de candomblé keto no Brasil.
Hierarquia
A despeito de todas as alterações ocorridas com o passar dos anos, a Irmandade mantém rígida a sua hierarquia.
A principal figura continua a ser a Juíza Perpétua. Ela não é escolhida por meio de votação ou por qualquer outro meio, mas por reunir uma série de pré-requisitos, tais como ter mais tempo de Irmandade, ter a idade cronológica avançada, comprovada devoção à Santa e, principalmente, conhecer os meandros da Irmandade. Estes segredos ficam restritos às pessoas da confraria.
Para fazer parte da Irmandade, a postulante deve ser negra de idade avançada e já ter demonstrado zelo por Nossa Senhora.
Atendendo a essas condições, a postulante faz saber, por intermédio de uma das irmãs, o seu interesse de ingressar na Irmandade.
A pessoa é posta em observação e, após a formalização da proposta, segue-se um período de três anos, no qual deve adaptar-se às obrigações e aos deveres.
Nesse ínterim, é chamada de "irmã de bolsa", por ser seu dever esmolar para a Irmandade. Nessa fase, sempre que convidada deve apresentar-se de branco.
O sagrado dá passagem ao profano
Ainda hoje a cerimônia preserva seus traços característicos, marcados pela memória do sofrimento dos escravos para alcançar a liberdade.
Segundo os pesquisadores, é exatamente este o significado da celebração, o agradecimento a Nossa Senhora pela liberdade conseguida com muito sacrifício, com a realização de várias cerimônias, culminando com a assunção da mãe de Jesus.
Em linhas gerais, a programação da festa de Nossa Senhora de Boa Morte inclui a confissão na Igreja Matriz, um cortejo representando a morte de Nossa Senhora, uma vigília, ceia e uma procissão do enterro da santa.
Depois, é celebrada a ascensão de Nossa Senhora, seguida de procissão e de uma missa na Igreja Matriz da cidade.
Embora a mãe de Jesus seja cultuada o ano inteiro, o ápice dessa devoção da Irmandade tem uma data marcada: acontece com a celebração da ascensão da santa.
No calendário de duração da festa de Nossa Senhora da Boa Morte, sexta-feira e sábado são os dias dedicados aos cultos sagrados e secretos.
Em cerimônia privativa, as irmãs rezam para Nossa Senhora enquanto queimam-se incensos na pequena casa ao lado da Capela da Ajuda, local onde uma imagem de 300 anos de Maria morta é arrumada e velada.
Depois, é feita a saída em procissão do corpo de Nossa Senhora. Durante o cortejo, a imagem tricentenária da santa é carregada pelas irmãs que integram a comissão da festa no ano. Durante toda a procissão, elas são auxiliadas e se revezam no translado do corpo.
Todas se vestem de branco, têm contas e brincos brancos ou prateados, usam torço muçulmano também branco e carregam tochas com velas acesas.
O traje branco é sinal de luto para o povo de santo. A missa de corpo presente é feita em memória das irmãs falecidas. As irmãs retornam com o caixão à sede da sociedade. Velam Nossa Senhora e fazem rituais secretos.
Depois deles, oferecem uma ceia branca (peixes, pães, arroz e vinho) à comunidade.
Como no candomblé a sexta-feira é um dia dedicado a Oxalá e como esse orixá “não aprecia” dendê e carne, esses ingredientes são proibidos nessa refeição.
Há quem diga que a ceia branca é preparada para as irmãs falecidas. Assim sendo, é alimento para egum (espírito de uma pessoa que já morreu) e só pode ser comido na sede da Boa Morte.
“Há alguns anos, uma pessoa tentou levar comida embora e tomou um soco de um egum, derrubando tudo no chão. Isso foi um sinal de que os alimentos não deveriam ser comidos fora da nossa sede”, recorda uma das integrantes da confraria.
No sábado, na missa e na procissão simbolizando a morte de Nossa Senhora, as irmãs usam seus trajes de gala, as chamadas becas.
A cabeça é coberta por um lenço branco denominado bioco. Sobre a camisa branca trazem um pano- da-costa de veludo preto.
Na cintura amarram um lenço branco sobre a saia preta plissada e calçam chagrins (uma espécie de chinelo) brancos.
Domingo é o dia que se comemora a ascensão de Nossa Senhora ao céu. Para celebrar, as irmãs da confraria oferecem uma feijoada à população.
Aí sim, começa a festa profana, bem do jeito que o baiano gosta. Ela dá direito a muita comida, bebida e a samba-de-roda. Como toda a festa que se preza na Bahia, a alegria começa com data e hora marcadas... mas só termina quando o fôlego acabar.
A festa da Boa Morte
De todos os tesouros que preserva espalhados em suas ruas, a pequena cidade baiana de Cachoeira é detentora de uma das manifestações culturais mais ricas do País: a festa de Nossa Senhora da Boa Morte.
Realizada no fim de semana mais próximo a 15 de agosto, a iniciativa – mais do que uma simples comemoração – é um convite para ingressar num mundo onde cultura, tradição, história e magia convivem e se confundem.
Passados quase dois séculos de sua criação, a Irmandade da Boa Morte ainda é uma confraria católica de mulheres negras e mestiças que representam a ancestralidade dos povos africanos escravizados e libertos no Recôncavo Baiano. A sociedade ainda se mantém ativa e é fechada – somente podem ingressar nela as descendentes de escravas com mais de 40 anos.
Na época dos festejos, é escolhida a Mesa ou Comissão que se encarregará dos festejos do ano seguinte. Esta Mesa é composta por uma escrivã, uma tesoureira, uma provedora e uma procuradora geral.
Devido à interferência direta ou indireta da Igreja, hoje essa escolha dá-se por consenso.
Antigamente, porém, ela dava-se em recinto fechado sendo a "cédula de votação" um caroço de feijão preto, simbolizando a aceitação, de feijão mulatinho, simbolizando a recusa ou ainda um grão de milho, indicando a abstenção.
À Juíza Perpétua cabia o voto de Minerva. De início, a escolha era presidida por um membro da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios; mais tarde, esta tarefa passou a ser exercida pela Irmandade do Senhor Bom Jesus da Paciência.
A tarefa de realizar a festa cabe apenas à provedora, sob conselhos e supervisão da procuradora geral, que anteriormente já ocupou o cargo.
Esta pode substituir a provedora em quaisquer circunstâncias. A preocupação em preservar o culto é tal que a Comissão do ano anterior fica de sobreaviso para assumir total responsabilidade pela festa caso a Mesa do ano não possa realizá-la. Em última instância, a festa deve ser assumida pela Irmandade da Paciência.
É comum ouvir em Cachoeira que a festa da Boa Morte mistura a religião, o misticismo e o profano. Nada mais errado.
A festa da Boa Morte é inteiramente religiosa. Não se pode rotular de religioso somente aquilo que fica restrito ao catolicismo, pois os negros africanos escravizados também tinham sua religião e a trouxeram para o Brasil, onde seus descendentes a professam até nossos dias.
Quanto ao profano, fica por conta daqueles que nada tem a ver com a festa, armando barracas de bebidas e jogos por toda Rua 25 de Junho, cada qual com seu aparelho de som no volume máximo, competindo com os trios elétricos, por vezes enviados à festa.
Há risco de transformar um culto sério em autentico Carnaval sem que qualquer autoridade, seja ele eclesiástico policial ou civil, faça a mais leve tentativa de impedir esse desrespeito.
Fontes:
FACOM UFBA
http://www.facom.ufba.br/com024/boamorte/agrad.html
Irmandade da Boa Morte
Mulheres negras fundaram o primeiro movimento feminista no Brasil
Fabíola Musarra para a Revista Planeta
Edição 395
http://www.terra.com.br/revistaplaneta/mat_395.htm