Essas peças feitas de prata funcionavam como amuletos e exibem símbolos do culto aos orixás.
Negras escravas os usavam amarrados à cintura em dias de festa. Acredita-se que negros vindos da região do Islã foram os responsáveis pela produção desses ornamentos, eles conheciam técnicas de fundição e trabalho dos metais. Escravos vindos dessas regiões chegaram em grandes quantidades à Bahia.
Os anciões da sociedade secreta Ogboni, conselho de altas funções, uma espécie de corte de Justiça do império de Oyó e dos reinos iorubás, usavam na cintura uma peça chamada edan.
Esse adereço é uma corrente de cerca de 30 cm, em cujas duas extremidades há um pequeno bastão de bronze: um representa o sexo feminino, outro, o masculino.
Essas peças do culto Ogboni, que tem como orixá protetor Oxum, podem ter servido como inspiração para outros adereços que se tornaram muito conhecidos na Bahia do século XIX, os balangandãs.
Sabe-se que muitos reis e príncipes africanos vieram como escravos para o Brasil. Foram eles que trouxeram as coisas mais importantes.
Essa memória e as tradições passadas por gerações foram tomando vida. Era essa vida que sacudia nas cinturas das chamadas mulheres de ganho, negras que saíam com tabuleiros para vender quitutes, precursoras das baianas de acarajé.
Vaidosas, faziam questão de sair sempre bem vestidas e enfeitadas, como é possível perceber na iconografia dos séculos XVIII e XIX com jóias que, além da beleza, funcionavam como amuletos protetores.
Em uma das pinturas do período, uma escrava negocia com uma negra liberta a compra de um brinco. A escrava, descalça, com o filho amarrado às costas e um tabuleiro de frutas na cabeça, já tem nas mãos o brinco que pretende adquirir, enquanto a dona da jóia, sentada (e calçada, como as demais negras libertas) negocia com ela o valor a ser pago pelo adereço.
Uma negra quando ganhava algum dinheiro queria uma jóia que simbolizava a ânsia de ser livre e uma homenagem às suas divindades. Ela devia ter, no mínimo, uma argola, um modelo feito de acordo com seu orixá de proteção.
Já nos fartos balangandãs, a quantidade de referências era ainda maior. Alguns chegavam a ser formados por 55 peças e a pesar 750 gramas.
Peças de rara curiosidade, únicas no comércio artístico da prata, são os inconfundíveis e movimentados balangandãs, tão cheios de mistério e ao mesmo tempo de alegria.
A variada riqueza de seus ornatos, a diversidade da origem de seus componentes, a liberdade de sua exuberância, a mistura de animais, flores, frutos, amuletos, signos, representa uma grande oferenda.
Seria o próprio balançar desses objetos que teria lhes dado nome. "A palavra balangandã seria de origem onomatopeica e vem do som que produzem esses berloques quando em contato uns com os outros", explica a historiadora Hildegardes Viana.
Todo esse universo de coisas, presas à cintura das negras, reunia frutas, animais e objetos (como cabaça, chave e pilão) ligados às divindades afro-brasileiras, além de dentes de animais e figas, e peças relacionadas com a tradição islâmica, como as suratas do Alcorão.
Essas poderiam ser pequenas peças cilíndricas de prata ou saquinhos de couro contendo em seu interior um pedacinho do livro sagrado do Islã.
Segundo o antropólogo Raul Lody, eles são os precursores dos atuais patuás da Bahia. "Os patuás, hoje, são saquinhos de plástico imitando couro, recebendo cores conforme o simbolismo dos orixás". Como uma adaptação à sua crença, agora os adeptos do candomblé colocam no interior do patuá a conta de seu orixá e uma reza de proteção, como a de São Jorge (sincretizado com Oxóssi) ou a de Nossa Senhora da Penha (sincretizada com Oxum).
Há ainda símbolos cristãos que podem ganhar, inclusive, novas interpretações, como os santos, a pomba (também ligada a Oxalá) e os olhos de Santa Luzia, além de animais e frutas. São Jorge, santo guerreiro, pode ser representado pela lua ou pela espada, assim como Oxóssi. A chave é o símbolo de Xangô Airá ou de São Pedro, que abre a porta do céu, ou mesmo de Exu, orixá que abre e fecha os caminhos.
A influência desses objetos que conjugam magia e vaidade pode datar de épocas e períodos aparentemente improváveis.
A proteção trazida pelos balangandãs também está relacionada à parte do corpo sobre a qual eles são usados, a cintura, considerada uma "área de forte significado ritual religioso, por ser zona que marca a fertilidade;
“Alguns conjuntos eram usados bem próximos ao baixo ventre ou mesmo tocando este”, escreve Lody em Jóias de axé.
Segundo o antropólogo, não apenas as jóias de crioulas possuem influências diversas, mas as roupas das negras de ganho no Brasil do século XIX seriam projeções das roupas das vendedeiras portuguesas dos séculos XVIII e XIX, que vendiam nas ruas, praças e mercados de Lisboa, Porto e Coimbra.
"Essas roupas portuguesas já haviam incorporado uma afro-islamização acrescida de outras vertentes civilizatórias da Índia e da Ásia", afirma.
O significado das peças dos balangandãs
O chacoalhar dos balangandãs há tempos deixou de ser escutado pelas ruas e vielas da Bahia. Alguns exemplares são encontrados em pontos turísticos como o Mercado Modelo e o Pelourinho, além de algumas joalherias, mas a maioria é apenas banhada em prata.
Lody questiona se esses seriam objetos usados pelas mulheres para proteger o dinheiro, o ganho, uma forma de estarem preparadas para as relações comerciais de competição.
O fato é que os balangandãs estão "num mundo exclusivamente feminino, exceto as figas e dentes encastoados, que são de uso indistinto, masculino e feminino", diz.
E esse mundo, predominantemente feminino, tinha deixado raízes no continente africano. Se, por um lado, eram minoritárias no culto Ogboni, as mulheres lideravam a sociedade secreta Gueledé.
Entre suas atribuições, estava a de serem as principais encarregadas do comércio, o que lhes rendeu proeminência econômica, religiosa, social e política.
Corrente - símbolo da escravidão. afasta mau olhado e doenças.
Pão de Angola - símbolo da longevidade.
Pomba - símbolo dos santos mártires e devoção cristã.
Romã - símbolo do gênero humano e fecundidade.
Ferradura - símbolo da felicidade e sorte.
Cabaça - Cosme e Damião - Usado para guardar água pelos escravos.
Sol - Oxumaré - Deus do arco-íris e chuvas.
Lua, Arco e Flexa - Oxóssi - Deus das florestas e da caça, São Jorge.
Caranguejo - Omolú - Deus do Sofrimento.
Espada - Iansã - Deusa dos raios, ventos e tempestades.
Caju ou Machado duplo - Xangô - Deus do raio, trovão, fogo e justiça.
Peixe - Iemanjá - Deusa das águas salgadas.
Cajado - Oxalá - Deus do ar, céu, rios e montanhas.
Uvas ou Leque - Oxum - Deus das águas doces, fontes e cachoeiras.
Balangandãs, barangandãs, berenguendéns
Jota Efegê.
Jornal do Brasil
Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1963