Na mitologia sobre a invenção do candomblé, os colares de contas aparecem como objetos de identificação dos fiéis aos deuses e o seu recebimento, como momento importante nessa vinculação.
De acordo com o mito, a montagem, a lavagem e a entrega dos fios-de-contas constituem momentos fundamentais no ritual de iniciação dos filhos-de-santo, os quais, daí em diante, além de unidos, estão protegidos pelos orixás.
Feitos com contas de diferentes materiais e cores, esses fios apresentam uma grande diversidade e podem ser agrupados por tipologias de acordo com os usos e significados que têm no culto. Assim, acompanham e marcam a vida espiritual do fiel, desde os primeiros instantes de sua iniciação até as suas cerimônias fúnebres.
Como os momentos da montagem e do recebimento, também o instante da ruptura é significativo; entretanto, o rompimento do fio-de-contas, mais do que indicar um mau presságio, que assusta e preocupa o indivíduo e a comunidade, pode ser o início de um novo ciclo, um recomeço um momento de virada que pede um novo fio.
Dos primeiros fios – simples ascéticos e rigorosos – às contas mais livres, exuberantes, complexas e personalizadas que a pessoa vai produzindo ou ganhando ao longo do tempo, delineia-se o caminho de cada um em sua vinculação aos orixás e à comunidade de terreiro.
Dessa maneira, mais do que a liberação do gosto particular, as transformações nos colares revelam o conhecimento adquirido pela pessoa e sua ascensão na hierarquia religiosa.
De tal modo que um leigo pode passar desapercebido por um fio-de-contas ou vê-lo apenas como um adorno, enquanto um iniciado na cultura do candomblé o tomará como um objeto pleno de significações, que pode ser “lido” e no qual é possível identificar a raiz, o orixá da cabeça e o tempo de iniciação, entre outros dados da vida espiritual de quem o usa.
Dos ritos secretos e espaços fechados do culto aos orixás, os fios-de-contas ganharam o mundo e adquiriram novos usos. Da África vieram para o Brasil.
Aqui, hoje, devido ao sincretismo religioso, além dos espaços de culto, é possível observar a presença de fios-de-contas em lugares inusitados como automóveis e botequins, mas já destituídos das funções e sentidos primordiais, usados apenas para proteger os espaços e as pessoas contra maus agouros.
Apesar de essas mudanças estarem associadas à diluição dos significados, os diferentes usos cotidianos e excepcionais, dentro e fora do culto, mais ou menos fiéis à tradição, revelam o valor dos fios-de-contas na cultura brasileira, o sentido em colecioná-los e expô-los, como na exposição Identidade por um Fio.
Além de chamar a atenção para o colar, um objeto de destaque na cultura material de outras tantas sociedades – um tipo de objeto que é mesmo universal –, a exibição de coleções produzidas em diferentes momentos, associada a imagens atuais de festas públicas [1], cerimônias, Ialorixás e Babalorixás [2], permite observar o candomblé do Rio de Janeiro na contemporaneidade.
Os primeiros fios-de-contas integrados à coleção do Museu do Folclore Edison Carneiro foram adquiridos no final dos anos 1970 no Mercadão de Madureira, em uma típica loja “de ervas” ou “de macumba” – conforme se diz, de acordo com a afinidade ou o preconceito –, onde, entre tantos materiais e artefatos, vendem-se as miçangas e, não raro, os colares já prontos.
São típicos, portanto, de uma produção em série, sem autoria, que respeita os códigos materiais, cromáticos e quantitativos, sem a exigência do processo de fabricação ser vinculado ao ritual de iniciação.
De uma beleza singela, esses fios apontam por contraste para a opulência dos fios produzidos pelos artistas Jorge Rodrigues e Junior de Ode [3], incorporados recentemente à coleção do Museu.
As mudanças no modo de identificação dos adeptos do candomblé, indicadas nas peças e fotos em exibição, deixam entrever uma crescente valorização da estética, o uso extravagante de vestimentas e adereços que contribui para o que Reginaldo Prandi denominou de a “hipertrofia ritual das religiões afro-brasileiras”.
No entanto, é preciso distinguir entre a estetização do culto, que decorre do abandono dos valores éticos e da conseqüente redução dos significados a meras aparências, e a dimensão estética intrínseca ao culto aos orixás, o valor fundamental da arte nas culturas originais africanas.
A plasticidade inerente ao candomblé faz a diferença entre artes maiores e menores ter ainda menos sentido do que na história da arte de origem européia; como tudo é significante, é possível ao olhar estender-se tanto por visadas panorâmicas dos conjuntos quanto em miradas certeiras de minúsculos detalhes.
Assim, apesar de ser um culto de segredos, é como se o candomblé fosse uma religião propícia, destinada mesmo aos múltiplos recortes da fotografia.
O que faz perguntar por que o candomblé tem uma fortuna crítica escrita riquíssima – de autores como Nina Rodrigues, Edison Carneiro, Roger Bastide, Pierre Verger, Muniz Sodré, Reginaldo Prandi e José Flavio Pessôa de Barros, entre outros –, mas não um acervo iconográfico à altura de sua fotogenia, ainda que possam ser lembradas as fotos excepcionais de Pierre Verger e José Medeiros.
A estes, junta-se a partir de agora o nome de Francisco da Costa, que com suas fotos traduz com eficácia e encanto a beleza do candomblé.
texto: Roberto Conduru
fonte:
Identidade por um Fio: colares e fios-de-contas no culto aos Orixás
http://www.studium.iar.unicamp.br/10/2.html?studium10=index.html