No mundo dos feitiços - O Feitiço
Mas o que não sabem os que sustentam os feiticeiros, é que a
base, o fundo de toda a sua ciência é o Livro de S. Cipriano.
Os maiores alufás, os mais complicados pais-de-santo, têm
escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada fantástica do S.
Cipriano.
Enquanto criaturas chorosas esperam os quebrantos e as
misturadas fatais os negros soletram o S.Cipriano, à luz dos candeeiros...
O feitiço compõe-se apenas de ervas arrancadas ao campo
depois de lá deixar dinheiro para o saci, de sangue, de orações, de galos,
cabritos, cágados, azeite-de-dendê e do livro idiota.
É o desmoronamento de um sonho!
Os feiticeiros, porém, pedem retratos, exigem dos clientes
coisas de uma depravação sem nome para agir depois fazendo o egum, ou evocação
dos espíritos, o maior mistério e a maior pândega dos pretos;
e quase todos roubam com descaro, dando em troco de dinheiro
sardinhas com pó-de-mico, cebolas com quatro pregos espetados, cabeças de pombo
em salmoura para fortalecer o amor, uma infinita série de extravagâncias.
Os trabalhos são tratados como nos consultórios médicos: a
simples consulta de seis a dez mil réis, a morte de homem segundo a sua
importância social e o recebimento da importância por partes.
Quando é doença, paga-se no ato - porque os babaloxás são
médicos, e curam com cachaça, urubus, penas de papagaio, sangue e ervas.
A policia visita essas casas como consultante. Soube nesses
antros que um antigo delegado estava amarrado a uma paixão, graças aos
prodígios de um galo preto.
A polícia não sabe pois que alguns desses covis ficam
defronte de casas suspeitas, que há um tecido de patifarias inconscientes
ligando-as.
Mas não é possível a uma segurança transitória acabar com um
grande vício como o Feitiço.
Se um inspetor vasculhar amanhã os jabotis e as figas de uma
das baiúcas, à tarde, na delegacia os pedidos choverão...
Eu vi senhoras de alta posição saltando, às escondidas, de
carros de praça, como nos folhetins de romances, para correr, tapando a cara
com véus espessos, a essas casas; eu vi sessões em que mãos enluvadas tiravam
das carteiras ricas notas e notas aos gritos dos negros malcriados que
bradavam.
- Bota dinheiro aqui!
Tive em mãos, com susto e pesar, fios longos de cabelos de
senhoras que eu respeitava e continuarei a respeitar nas festas e nos bailes,
como as deusas do Conforto e da Honestidade.
João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
Domínio Público - Biblioteca Virtual de Literatura
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