Espraiada sobre a areia candente do sol do deserto, Mali é um conjunto de cidades que cantam à arquitetura de barro: desde a senhorial e antiquíssima Djenné, construída sobre o que equivale mais ou menos a uma ilha no rio Niger, que aloja a maior obra arquitetônica de barro do mundo, a Grande Mesquita, até a remotíssima e mítica Timbuctú, outrora entreposto de riquezas e encruzilhada de caravanas, hoje à margem do que ocorre no século, com suas casas de palha e barro desajeitadamente dispostas em malemolência eterna...
E também a extensa região dos Dogons, essa estranha cultura que nos deixou suas habitações incrustadas em escarpados para se proteger dos invasores ancestrais e que ainda subsistem na esplanada.
Não é exagerado dizer que em Mali existe tanto patrimônio artístico e arquitetônico da cultura do barro, apesar dos despojos contínuos dos saqueadores, que é um território no qual se caminha “pisando a história”.
A falésia de Bandiagara no Mali é a morada dos Dogons. O povo cujo nome significa aqueles aos quais foi dada a palavra habita uma fratura geológica e simbólica, onde cada rocha, cada baobá e cada animal são constituídos de um espírito e de uma alma com os quais eles dialogam e interagem.
O mundo Dogon não participa do imenso interesse dos estudos antropológicos, cuja "descoberta" deste povo é recente, também desconhece que seus objetos sagrados sejam a menina dos olhos do setor etnológico do Metropiltan Museum de Nova York, e muito menos que os mesmos sejam artigos de cobiça entre os principais antiquários europeus, fonte de lucros extraordinários.
Aos Dogons basta ter apenas todo o tempo do mundo ou um tempo que é só deles. Reunidos: Dogons, Djenne, Mopti, Rio Niger e Timbuctu - a cidade dos desejos, o lugar fora do tempo, o mito - fazem acender o fogo sagrado dos viajantes à procura de grandes descobertas.
Arquitetura e simbologia das vilas Dogon.
Não bastasse a complexidade dos mitos e seus rituais minuciosos, a arquitetura Dogon nos sinaliza que, na falésia, tudo pertence ao universo de seus símbolos, mitos e lendas.
E, portanto, não foge a tais preceitos. Neste sentido, cada vila Dogon é construída como se representasse o corpo humano.
A cabeça é a casa do Hogon: chefe religioso e membro mais ancião da tribo, o Hogon vive recluso (apenas uma menina que ainda não atingiu a puberdade pode aproximar-se dele para trazer-lhe água e comida), sendo o responsável pelo Altar do Lebé, o mítico progenitor dos Dogon, ressuscitado sob a forma de serpente.
O Hogon recebe a sabedoria da serpente sagrada, dirimindo as controvérsias sobre as cerimônias religiosas nas ocasiões de severidade da seca, doenças, entre outras dificuldades.
O coração é a Togu-na: essa genuína casa da palavra é um abrigo para as intempéries. É formada por oito pilares de madeira entalhada, que representam os oito místicos progenitores dos Dogon, criados por Ann, Deus do universo.
O teto não chega a um metro de altura, sendo pensado e construído para que seus membros, durante uma controvérsia, não se levantem em um rompante durante a discussão, retirando-se do recinto.
As mãos são representadas pela casa onde as mulheres ficam reclusas durante o ciclo menstrual.
Veias e artérias são representadas pelas ginnas, conhecidas como as habitações estendidas por grupos, dentro de um marco de linhagem patriarcal.
A cerca destas habitações estão igualmente estruturadas como representação dos membros do corpo humano; sua área de respiro equivale ao busto; sua cozinha circular, à testa.
Construídas para armazenar grãos, as várias unidades retangulares com o teto plano e outras de forma cilíndrica com um teto pontiagudo representam, enfim, os órgãos genitais.
Dados geográficos e socioculturais.
Cultivadores e milho e outros cereais, pastores de gado e arboricultores, os Dogon ocupam a região das falésias do Bandiagara (Mali) e se consideram procedentes das populações do grupo linguístico da região do Mande, onde se supõe situar o antigo império manding.
Armazenam os cereais cultivados em celeiros retangulares, em torno dos quais constroem suas casas. O núcleo da sociedade é a família, estendida sob a autoridade de um patriarca; a autoridade social é desempenhada por um conselho de anciãos.
O abundante tesouro de mitos e de ritos dos Dogon é conhecido graças aos trabalhos de Marcel Griaule, que a partir de 1931 começou a estudar sua cultura original.
Por causa da dificuldade de acesso à região em que se encontram e da aridez do clima, ficaram isolados durante muito tempo e puderam preservar seus costumes e hábitos religiosos.
O culto dos mortos é um elemento essencial na cultura dogon: a morte se situa numa perspectiva de ressurreição e fecundidade, preocupações dominantes dessa sociedade (Calame-Griaule 1968).
Esboço da religião dogon, a partir de Marcel Griaule (1963: 33-38).
Entre os dogon, o culto principal é aquele voltado ao deus criador Amma, longínquo e imaterial.
Outros quatro cultos têm por objetivo estabelecer relações constantes com os ancestrais: culto das máscaras, do Lébé (grande ancestral), dos Binou (ancestrais ou gênios que viveram no período mítico) e das almas.
Trata-se de quatro sociedades, diferentes quanto aos sacerdotes, ao material, mas parecidas pelas forças com as quais agem e pela natureza dos personagens míticos.
A instituição das máscaras surgiu do culto ao fundador do povo Arou, segundo filho do grande ancestral Lébé e que morreu sob forma de serpente.
O culto dos Binou constitui os cultos de pequenos grupos, a um ancestral cuja existência se desenrolou no período mítico, ou a um gênio: Yéban, Nommo - que são metamorfoses de ancestrais que viveram em épocas longínquas.
O ancestral manifesta seu desejo de ser objeto de um culto, seja por intermédio de um animal, do chefe do grupo, ou de uma pedra (chamada duge), que será o suporte temporário da alma e do nyama (força vital) do Binou.
Binou significa "aquele que voltou". O contato retomado por esse ancestral é interpretado como um sinal benéfico, como uma ajuda real aos descendentes, desde que estes respeitem certo número de interdições e lhe instituam um culto.
Alguns vilarejos têm um "totem" particular. Os vilarejos de Gyendoumman, Sodamma e Amtaba, por exemplo, têm por "totem" o ancestral mítico Yébéné - uma velha mulher que, no tempo em que os dogon moravam ainda no país Mande e chegado o tempo de sua metamorfose, se distanciou na mata para tomar a forma de uma serpente.
A fim de mostrar a seus filhos que ela queria ficar unida a eles, ela voltou ao vilarejo sob forma de serpente e cuspiu uma pedra (duge), na casa de seu filho. Mais tarde, essa pedra foi levada pelo sacerdote encarregado do culto à desaparecida.
Uma estatueta também pode funcionar como uma pedra duge, ou seja, ser o suporte temporário da alma e do nyama do ancestral.
O fundador do vilarejo Diamini, no curso de uma caça, encontrou-se diante de uma hiena e quis mata-la. A hiena, que pertencia aos gênios Yéban, disse-lhe: "Não me mates, eu vou pedir a teus ancestrais uma coisa que eu te darei". A hiena partiu, para voltar com uma pedra duge e uma estatueta de madeira.
Voltando ao vilarejo, o caçador disse: "Uma hiena me deu estas coisas; vamos construir um santuário onde nós as disporemos. São coisas boas; não matemos mais a hiena: ela será para nós o sinal do nosso babinu (aquele que voltou)".
O sacerdote encarregado do culto do Binou tem o nome de binukedine (acompanhador do "totem"). Ele recebe a consagração pelo conselho de anciãos do clã, depois que uma série de provações místicas tenham provado sua designação pelo ancestral totêmico.
À função do binukedine são relacionadas várias interdições, que tendem a torna-lo um ser puro, digno de estar em contato com a alma do ancestral, contida temporariamente na pedra duge.
Suas funções são a guarda do santuário, sacrifícios regulares oferecidos em nome do grupo ou de um indivíduo, imposição de um nome aos recém-nascidos do clã.
Esboço da cosmogonia dogon, a partir de Marcel Griaule e Germaine Dieterlen (1959: 141-142).
Entre os dogon, o ponto de partida da criação é a estrela que gira ao redor de Sirius; os dogon acreditam que ela seja a menor e mais pesada de todas as estrelas, contendo os germens de todas as coisas.
Seu movimento ao redor de Sirius e de si mesma sustenta a criação no espaço. Da mesma maneira como no mundo vegetal uma única semente se divide em outras sete, ocorre no plano do universo: da primeira estrela provêm outras sete. Porém, desde o momento em que os seres humanos chegaram a ser conscientes de si mesmos e capazes de uma ação intencional, o curso da criação se desenrolou de maneira menos simples.
Os acontecimentos da criação da humanidade tiveram lugar no interior de um ovo, um mundo situado num espaço infinito e contendo o modelo da criação - Nommo, o filho de Deus (Amma). Esse ovo estava divido em duas placentas iguais, cada uma contendo um par de gêmeos Nommo, emanações diretas de Deus e prefigurações do homem.
Como todas as outras criaturas, aqueles dois pares de gêmeos estavam dotados de dois princípios espirituais de sexo oposto; cada um deles era em si mesmo um par.
Em uma das placentas o gêmeo masculino não esperou o período usual de gestação assinalado por Amma, emergindo prematuramente do ovo.
Além do mais, arrancou um pedaço de sua placenta, que se converteu na Terra. Esse ser, Yurugu, teve a intenção de fazer um mundo só para ele, baseado no primeiro, mas o superando.
Esse procedimento irregular, no começo, desorganizou a ordem da criação estabelecida por Amma; assim, a Terra foi provida de uma alma masculina somente, já que o ser que a fez era imperfeito.
De tal imperfeição surgiu a noção de impureza; a Terra e Yurugu ficaram, desde o princípio, solitários e impuros. Yurugu, compreendendo que esta situação o impediria de concluir sua obra na Terra, voltou ao céu a fim de buscar sua alma gêmea restante na outra parte do ovo.
Yurugu não pôde recupera-la, estando a partir desse momento em uma busca perpétua e inútil. Voltando a Terra, começaram a surgir seres simples, incompletos, frutos de incesto; ele mesmo procriou em sua própria placenta, com sua mãe.
Vendo isso, Amma decidiu enviar a Terra os Nommos da outra metade do ovo, constituindo uma nova terra imaculada. Os quatro antepassados homens foram chamados Amma Seru, Lébé Seru, Binu Seru e Dyongu Seru. Seus descendentes coincidiram com o surgimento da luz na Terra, que até então havia estado nas trevas.
A água, em forma de chuva, purificou e fecundou o solo, no qual brotaram as oito sementes que os antepassados míticos haviam trazido consigo: seres humanos, animais de plantas imediatamente surgiram.