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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Adoxu

As Religiões no Rio - João do Rio
No mundo dos feitiços - As Iauô

Nesse mesmo dia Antônio veio buscar-me à tarde.
- A casa a que vai V.S. é de um grande feiticeiro; verá se não há fatos verdadeiros.
Quando chegamos, a sala estava enfeitada. Em derredor sentavam-se muitos negros e negras mastigando olobó, ou cola amargosa, com as roupas lavadas e as faces reluzentes.
A um canto, os músicos, fisionomias estranhas, faziam soar, com sacolejos compassados, o xequerêe, os atabaques e ubatás, com movimentos de braços desvairadamente regulares.
Não se respirava bem.
A cachaça, circulando sem cessar, ensanguentava os olhos amarelos dos assistentes.
- As vezes tudo é mentira, à custa de cachaça e fingimento - diz Antônio.
Quando o santo não vem, o pai fica desmoralizado. Mas aqui é de verdade...
Olhei o célebre pai-de-santo, cujas filhas são sem conta.
Estava sentado à porta da camarinha, mas levantou-se logo, e a negra iniciada entrou, de camisola branca, com um leque de metal chocalhante.
Fula, com uma extraordinária fadiga nos membros lassos, os seus olhos brilhavam satânicos sob o capacete de pinturas bizarras com que lhe tinham brochado o crânio.
Diante do pai estirou-se a fio comprido, bateu com as faces no assoalho, ajoelhou e beijou-lhe a mão. Babaloxá fez um gesto de bênção, e ela foi, rojou-se de novo diante de outras pessoas.
O som do agogó arrastou no ar os primeiros batuques e os arranhados do xequeré.
A negra ergueu-se e, estendendo as mãos para um e para outro lado, começou a traçar passos, sorrindo idiotamente. Só então notei que tinha na cabeça uma esquisita espécie de cone.
- É o ado-chú, que faz vir o santo - explica Antônio. - É feito com sangue e ervas. Se o adochú cai, santo não vem.
A negra parecia aos poucos animar-se, sacudindo o leque de metal chocalhante.
Em derredor, a música acompanhava as cantigas, que repetiam indefinidamente a mesma frase.
As dança dessas cerimônias é mais ou menos precipitada, mas sem os pulos satânicos dos Cafres e a vertigem diabólica dos negros da Luisiania. É simples, contínua e insistente, horrendamente insistente.
Os passos constantes são o alujá, em roda da casa, dando com as mãos para a direita e para a esquerda, e o jêquedê, em que ao compasso dos atabaques, com os pés juntos, os corpos se quebram aos poucos em remexidos sinistros.
Não sei se o enervante som da música destilando aos poucos desespero, se a cachaça, se o exercício, o fato é que, em pouco, a iauô parecia reanimar-se, perder a fadiga numa raiva de louca.
De cada xequexé-xequexé que a mão de um negro sacudia no ar, vinha um espicaçamento de urtiga, das bocas cusparinhentas dos assistentes escorria a alucinação.
Aos poucos, outros negros, não podendo mais, saltaram também na dança, e foi então entre as vozes, as palmas e os instrumentos que repetiam no mesmo compasso o mesmo som, uma teoria de cara bêbedas cabriolando precedidas de uma cabeça colorida que esgareiava lugubremente.
A loucura propagou-se.

João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
Domínio Público - Biblioteca Virtual de Literatura
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