Terreiros sem purismos
Em livro, antropóloga italiana mostra que nossas africanidades são mais fluidas do que imaginamos
O Brasil é dotado de uma impressionante quantidade de ritos religiosos ligados aos cultos de possessão. Candomblé, umbanda, encantaria, terecô, catimbó, jarê, culto da jurema, candomblé de caboclo, e tantos outros, são exemplos deste vasto manancial místico que caracteriza o País. Nós, definitivamente, gostamos de bater tambor. É natural, diante dessa profusão, que inúmeros estudos de recorte antropológico surjam sobre tão vasto universo. Poucos têm, entretanto, a profundidade provocadora deste A Busca da África no Candomblé, (Pallas, 376 págs., R$ 44,50) da antropóloga italiana Stefania Capone.
Ao escolher o candomblé como tema, a autora sugere uma série de questões que colocam em uma saia justa alguns adeptos do povo de santo e acadêmicos dedicados ao assunto. Afinal, em meio a tantos e tão diversificados cultos, o candomblé tem merecido uma quantidade bem superior de estudos, como se fosse, religiosamente, mais complexo e legítimo que os outros. Será que podemos creditar ao candomblé o caráter de uma religião dotada de um corpo doutrinário ético e moral que os outros cultos citados não têm? As demais formas de manifestações religiosas de base afro-brasileiras são somente expressões de mandingas e magias? Os nagôs baianos, criadores do candomblé, são dotados de extrema sofisticação existencial, enquanto os bantos, criadores da macumba carioca, não passam de bárbaros feiticeiros? Stefania Capone responde a estas indagações com um categórico não.
Antes que algum implicante estranhe o fato de uma autora da terra da pizza falar sobre um tema com gosto de vatapá, é necessário destacar que não é de agora a dedicação da italiana ao assunto. Sua primeira visita ao Brasil para pesquisar o candomblé remonta ao ano de 1983. Desde então, vem produzindo pertinentes reflexões a respeito da religião dos orixás. Este trabalho discute, sobretudo, a tentativa estabelecida pelos candomblés nagôs de origem baiana, apoiados e muitas vezes estimulados por antropólogos ligados a eles, de legitimar sua primazia religiosa a partir de um duvidoso critério de âpurezaâ, que os remeteria diretamente à África. O que não é nagô, e consequentemente baiano, é âimpuroâ e âdegeneradoâ. A autora mostra que esta idéia, defendida com fervor por algumas casas de culto nagô, não foi elaborada na margem de lá do Atlântico. A construção da imagem de uma África primordial presente nos terreiros baianos foi elaborada por antropólogos que, segundo o conceito do historiador Eric Hobsbawm (este certamente nunca bateu tambor), atuaram como verdadeiros âinventores da tradiçãoâ.
A tarefa foi muito bem-sucedida. É comum se associar a tradição baiana a uma espécie de retorno às origens. Pertencer a uma casa de candomblé nagô é uma maneira de tornar-se âafricanoâ. Outros cultos, como o candomblé banto, a macumba, a umbanda e a encantaria, foram associados ao que é âsincréticoâ e âdegeneradoâ, distantes de um ideal religioso de africanidade que o culto nagô representa.
Para Stefania Capone, estas questões incluem um intricado jogo de poder. De um lado, os intelectuais estimulam essa visão da âpurezaâ nagô com o intuito de controlar o conhecimento do culto. De outro, o mito da supremacia nagô, difundido por vários estudiosos, é um instrumento de dominação política manipulado por algumas casas de candomblé que visam legitimar a hegemonia dos âpurosâ sobre os âdegeneradosâ. Iniciados e antropólogos se encontram na busca de uma África reinventada. A Bahia é o seu espaço privilegiado.
A autora mostra que, longe dos purismos, a tradição religiosa afro-brasileira é múltipla, dinâmica e altamente sujeita ao que podemos chamar de âcrioulizaçãoâ. Em meio a esta mistura, onde fiéis transitam de um culto a outro com extrema rapidez, é praticamente impossível se atingir um grau de pureza impermeável às influências externas. Nossas africanidades são mais fluidas do que imaginamos.
fonte : jornal Gazeta de Alagoas
Luiz Antonio Simas
Agência O Globo
http://gazetaweb.globo.com/gazeta/Frame.php?f=Materia.php&c=74324&e=1121
Em livro, antropóloga italiana mostra que nossas africanidades são mais fluidas do que imaginamos
O Brasil é dotado de uma impressionante quantidade de ritos religiosos ligados aos cultos de possessão. Candomblé, umbanda, encantaria, terecô, catimbó, jarê, culto da jurema, candomblé de caboclo, e tantos outros, são exemplos deste vasto manancial místico que caracteriza o País. Nós, definitivamente, gostamos de bater tambor. É natural, diante dessa profusão, que inúmeros estudos de recorte antropológico surjam sobre tão vasto universo. Poucos têm, entretanto, a profundidade provocadora deste A Busca da África no Candomblé, (Pallas, 376 págs., R$ 44,50) da antropóloga italiana Stefania Capone.
Ao escolher o candomblé como tema, a autora sugere uma série de questões que colocam em uma saia justa alguns adeptos do povo de santo e acadêmicos dedicados ao assunto. Afinal, em meio a tantos e tão diversificados cultos, o candomblé tem merecido uma quantidade bem superior de estudos, como se fosse, religiosamente, mais complexo e legítimo que os outros. Será que podemos creditar ao candomblé o caráter de uma religião dotada de um corpo doutrinário ético e moral que os outros cultos citados não têm? As demais formas de manifestações religiosas de base afro-brasileiras são somente expressões de mandingas e magias? Os nagôs baianos, criadores do candomblé, são dotados de extrema sofisticação existencial, enquanto os bantos, criadores da macumba carioca, não passam de bárbaros feiticeiros? Stefania Capone responde a estas indagações com um categórico não.
Antes que algum implicante estranhe o fato de uma autora da terra da pizza falar sobre um tema com gosto de vatapá, é necessário destacar que não é de agora a dedicação da italiana ao assunto. Sua primeira visita ao Brasil para pesquisar o candomblé remonta ao ano de 1983. Desde então, vem produzindo pertinentes reflexões a respeito da religião dos orixás. Este trabalho discute, sobretudo, a tentativa estabelecida pelos candomblés nagôs de origem baiana, apoiados e muitas vezes estimulados por antropólogos ligados a eles, de legitimar sua primazia religiosa a partir de um duvidoso critério de âpurezaâ, que os remeteria diretamente à África. O que não é nagô, e consequentemente baiano, é âimpuroâ e âdegeneradoâ. A autora mostra que esta idéia, defendida com fervor por algumas casas de culto nagô, não foi elaborada na margem de lá do Atlântico. A construção da imagem de uma África primordial presente nos terreiros baianos foi elaborada por antropólogos que, segundo o conceito do historiador Eric Hobsbawm (este certamente nunca bateu tambor), atuaram como verdadeiros âinventores da tradiçãoâ.
A tarefa foi muito bem-sucedida. É comum se associar a tradição baiana a uma espécie de retorno às origens. Pertencer a uma casa de candomblé nagô é uma maneira de tornar-se âafricanoâ. Outros cultos, como o candomblé banto, a macumba, a umbanda e a encantaria, foram associados ao que é âsincréticoâ e âdegeneradoâ, distantes de um ideal religioso de africanidade que o culto nagô representa.
Para Stefania Capone, estas questões incluem um intricado jogo de poder. De um lado, os intelectuais estimulam essa visão da âpurezaâ nagô com o intuito de controlar o conhecimento do culto. De outro, o mito da supremacia nagô, difundido por vários estudiosos, é um instrumento de dominação política manipulado por algumas casas de candomblé que visam legitimar a hegemonia dos âpurosâ sobre os âdegeneradosâ. Iniciados e antropólogos se encontram na busca de uma África reinventada. A Bahia é o seu espaço privilegiado.
A autora mostra que, longe dos purismos, a tradição religiosa afro-brasileira é múltipla, dinâmica e altamente sujeita ao que podemos chamar de âcrioulizaçãoâ. Em meio a esta mistura, onde fiéis transitam de um culto a outro com extrema rapidez, é praticamente impossível se atingir um grau de pureza impermeável às influências externas. Nossas africanidades são mais fluidas do que imaginamos.
fonte : jornal Gazeta de Alagoas
Luiz Antonio Simas
Agência O Globo
http://gazetaweb.globo.com/gazeta/Frame.php?f=Materia.php&c=74324&e=1121