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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

As religiões afro-brasileiras em mudança


O CANDOMBLÉ - religião brasileira dos orixás e outras divindades africanas que se constituiu na Bahia no século XIX - e demais modalidades religiosas conhecidas pelas denominações regionais de xangô, em Pernambuco, tambor-de-mina, no Maranhão, e batuque, no Rio Grande do Sul, formavam, até meados do século XX, uma espécie de instituição de resistência cultural, primeiramente dos africanos, e depois dos afro-descendentes, resistência à escravidão e aos mecanismos de dominação da sociedade branca e cristã que marginalizou os negros e os mestiços mesmo após a abolição da escravatura.
Eram religiões de preservação do patrimônio étnico dos descendentes dos antigos escravos. Assim foram conhecidas e analisadas por Roger Bastide que, entretanto, já observava a presença de brancos no candomblé no final da década de 1940, antecipando a transformação do candomblé e congêneres em religiões de caráter universal (Bastide, 1945, 1971, 1978). De lá para cá, muita coisa mudou, fazendo dessas religiões organizações de culto desprendidas das amarras étnicas, raciais, geográficas e de classes sociais.
Não tardou e foram lançadas no mercado religioso, o que significa competir com outras religiões na disputa por devotos, espaço e legitimidade.
No início do século XX, enquanto os cultos africanos tradicionais eram preservados em seus nascedouros brasileiros, uma nova religião se formava no Rio de Janeiro, a umbanda, síntese dos antigos candomblés banto e de caboclo transplantados da Bahia para o Rio de Janeiro, na passagem do século XIX para o XX, com o espiritismo kardecista, chegado da França no final do século XIX. Rapidamente disseminada por todo o Brasil, a umbanda prometia ser a única grande religião afro-brasileira destinada a se impor como universal e presente em todo o País (Camargo, 1961).
E de fato não tardou a se espalhar também por países do Cone Sul e depois mais além (Oro, 1993). Chamada de "a religião brasileira" por excelência, a umbanda juntou o catolicismo branco, a tradição dos orixás da vertente negra, e símbolos, espíritos e rituais de referência indígena, inspirando-se, assim, nas três fontes básicas do Brasil mestiço.
No curso da década de 1960, entretanto, o velho candomblé surgiu como forte competidor da umbanda. Com sua lógica própria e sua capacidade de fornecer ao devoto uma rica e instigante interpretação do mundo, o candomblé foi se espalhando da Bahia para todo o Brasil, seguindo a trilha já aberta pela vertente umbandista.
Foi se transformando e se adaptando a novas condições sociais e culturais. Religião que agora é de todos, o candomblé enfatiza a idéia de que a competição na sociedade é bem mais aguda do que se podia pensar, que é preciso chegar a níveis de conhecimento mágico e religioso muito mais densos e cifrados para melhor competir em cada instante da vida, que o poder religioso tem amplas possibilidades de se fazer aumentar.
Ensina que não há nada a esconder ou reprimir em termos de sentimentos e modos de agir, com relação a si mesmo e com relação aos demais, pois neste mundo podemos ser o que somos, o que gostaríamos de ser e o que os outros gostariam que fôssemos - a um só tempo (Prandi, 1991 e 1996).
Como agência de serviços mágicos, que também é, oferece ao não-devoto a possibilidade de encontrar solução para problema não resolvido por outros meios, sem maiores envolvimentos com a religião. Sua magia passou a atender a uma larga clientela, o jogo de búzios e os ebós do candomblé rapidamente se popularizaram, concorrendo com a consulta a caboclos e pretos-velhos da umbanda.
Parcela importante da legitimidade social que a cultura negra do candomblé desfruta hoje foi gestada a partir de uma nova estética formulada pela classe média intelectualizada do Rio de Janeiro e de São Paulo nas décadas de 1960 e 1970, que adotou e valorizou mais do que nunca aspectos negros da cultura baiana, seus artistas e intelectuais.
Começava o que chamei de processo de africanização do candomblé (Prandi, 1991), em que o retorno deliberado à tradição significa o reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram deturpados e perdidos na adversidade da Diáspora; voltar à África não para ser africano, nem para ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil é agora motivo de orgulho, sabedoria e reconhecimento público, e assim ser o detentor de uma cultura que já é, ao mesmo tempo, negra e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no orixá, o Brasil com axé.
Em resumo, ao longo do processo de mudanças mais geral que orientou a constituição das religiões dos deuses africanos no Brasil, o culto aos orixás primeiro misturou-se ao culto dos santos católicos para ser brasileiro, forjando-se o sincretismo; depois apagou elementos negros para ser universal e se inserir na sociedade geral, gestando-se a umbanda; finalmente, retomou origens negras para transformar também o candomblé em religião para todos, iniciando um processo de africanização e dessincretização para alcançar sua autonomia em relação ao catolicismo.
Nos tempos atuais, as mudanças pelas quais passam essas religiões são devidas, entre outros motivos, à necessidade da religião se expandir e se enfrentar de modo competitivo com as demais religiões.
A maior parte dos atuais seguidores das religiões afro-brasileiras nasceu católica e adotou a religião que professa hoje em idade adulta. Não é diferente para evangélicos e membros de outros credos. 


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Estudos Avançados
Print version ISSN 0103-4014
Estud. av. vol.18 no.52 São Paulo Sept./Dec. 2004
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000300015
DOSSIÊ RELIGIÕES NO BRASIL
O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso
Reginaldo Prandi , Professor Titular de Sociologia da USP