Seguidores

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Identidade por um Fio: colares e fios-de-contas no culto aos Orixás

A exposição Identidade por um Fio: colares e fios-de-contas no culto aos Orixás é um trabalho de pesquisa e documentação sobre a produção, os usos e os significados dos fios-de-conta no candomblé, articulando peças produzidas no passado com a produção de dois artistas contemporâneos, Jorge Rodrigues e Junior de Ode.
A curadoria é de Roberto Conduru e os assistentes Guilherme Lemos e Celso Gatamaran e as fotografias são de Francisco Moreira da Costa.
A exposição é uma realização do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular da FUNARTE e da UERJ (Instituto de Artes e Departamento Cultural) Galeria Mestre Vitalino, do Museu de Folclore Edison Carneiro, no Catete, Rio de Janeiro.
O Candomblé é uma religião iniciática de caráter progressivo. Sua organização se estabelece a partir de um conceito peculiar de hierarquia onde o que está “acima” não tem, necessariamente, poder sobre o que está “abaixo”, mas vai adquirindo, com o tempo e as “obrigações”, o direito de participar e “ver” aspectos mais profundos do cotidiano religioso obtendo, com isso, mais conhecimento.
A ascensão hierárquica se faz pela associação indissolúvel de tempo e conhecimento; tempo sem conhecimento ou conhecimento sem tempo constituem-se como caminhos desviantes que tornam o indivíduo inadequado à convivência coletiva. Em síntese, a hierarquia no candomblé se estabelece no sentido dos que “sabem” (no tempo) para os que “não sabem” (por terem pouco tempo).
No candomblé o saber sempre se realiza no real; quem sabe, não sabe para si nem por si, sabe a partir da necessidade e para fins. O saber é ao mesmo tempo o segredo, a necessidade e a capacidade de materializar o conhecimento, transmutando mitos em ritos, práticas e objetos.
Quanto mais conhecimento tanto mais ritos, práticas e objetos.
Um caminho interessante para se constatar isso é a observância sobre o fio-de-contas que, mais que um adorno, é uma marca e uma fonte de axé. O simples colar ao ser imerso na devida mistura de folhas quinadas, associada a alguns outros materiais, transforma-se numa identificação que remete o indivíduo ao seu lugar na comunidade.
A cerimônia da lavagem das contas é, por assim dizer, a inserção do neófito no universo mítico e místico do candomblé. Ao receber seus primeiros fios-de-contas, geralmente um fio de Oxalá e outro de seu orixá pessoal [1], o então abiã [2] se apercebe da importância de Oxalá no conjunto dos orixás.
Oxalá é o deus do branco, o pai dos orixás, ou seja, uma energia geradora que antecede, no tempo, os demais orixás. Oxalá pró-cria, abranda, esfria e descansa. Os primeiros conhecimentos acerca deste orixá circunscrevem-se na própria simbologia do branco que, sendo o somatório de todas as cores, traz em si todas as possibilidades de cor. É a energia de onde tudo sai e para onde tudo retorna por isso o branco é tanto a cor que festeja o nascimento [3] como a que marca o momento da morte.
O luto no candomblé é branco, pois representa o retorno do indivíduo à massa informe da ancestralidade. Por isso, necessariamente, o primeiro fio que se recebe é o branco de Oxalá, simbolizando o estado de latência que caracteriza o abiã com um candidato à iniciação. O branco de Oxalá dialetiza o justo descanso com o movimento gerúndio.
No período da iniciação, o iaô, além de fazer jus a uma pequena coleção com os inhãs [4] dos orixás que participam de sua configuração espiritual, recebe algumas contas específicas que o identificam como tal; são elas o mocam [5], o quelê [6] e os deloguns [7]; nesta ocasião os fios irão “comer” [8] junto com o “santo”, isto é, configurar-se-ão como verdadeiros campos de força.
Após a obrigação de três anos [9], é comum ao ainda iaô, já com alguma graduação, ser presenteado com alguma conta mais “enfeitada” adquirindo, com isto, o direito de criar para si colares mais rebuscados com miçangas um pouco maiores e até alguns poucos corais, primando ainda pela discrição.
Por ocasião da obrigação de sete anos, o agora ebomi adquire adornos que o identificam como tal: o runjebe, o lagdbá, o brajá, o âbar, o monjoló, os corais, as contas africanas multicoloridas e o alabastro. Mais que isso, ganha a liberdade total de criar seus próprios fios, seja no tamanho das contas, na riqueza dos detalhes ou dos próprios materiais a utilizar (ouro, prata, etc.). O ebomi já conhece os seus “fundamentos”, por isso a liberdade.
Entretanto, não termina aí o aprendizado. Até os sete anos o iaô é tutelado e educado por seus iniciadores, a partir daí é tutelado pela própria liberdade. Muito embora, parafraseando José Flávio Pessoa de Barros, “a modéstia não seja bem-vinda no candomblé”, o bom-tom e a justa medida são apreciadíssimos. O ebomi deve ser um exemplo para o iaô, principalmente no que tange ao manuseio de sua própria liberdade e a adequação às situações, dentro e fora da comunidade.
A confecção e utilização dos fios-de-contas deve ser sempre um exercício da criatividade, mas também deve responder a uma estética própria do candomblé que preserva através de seus objetos a sua própria história; inovações excessivas ferem a justa medida e tornam-se inadequadas, posto que os objetos são importantes instrumentos de apoio à manutenção da tradição oral.
texto de Guilherme Lemos
mestre em filosofia
e assistente técnico do Departamento Cultural
da UERJ
notas:
[1] Quando este não é filho do próprio Oxalá.
[2] Primeiro patamar da hierarquia. O abiã ainda não é iniciado, é um candidato à iniciação que já pode participar da vida cotidiana da comunidade-terreiro, contribuindo, via de regra, com serviços domésticos, funções que lhe permitem tecer as primeiras observações que se tornarão conhecimentos ou não, conforme sua capacidade e inteligência.
[3] Todos os iaôs vestem-se de branco por pelo menos três meses e repetem o uso do branco durante todas as suas posteriores obrigações.
[4] Fios de uma só “perna”, isto é, o colar simples de uma só fiada de miçangas cuja medida deve ir até a altura do umbigo.
[5] Cordão de palha da costa trançada cujos fechos são duas “vassourinhas” de palha; este cordão se constitui um símbolo do iaô e é, geralmente, preservado por toda vida. A palha da costa é utilizada ainda na confecção de quatro outras tranças que serão amarradas nos braços, recebendo aí o nome de icam, na cintura (a umbigueira) e no tornozelo, onde será acrescida de um guiso (o chaorô), cuja função é sinalizar o lugar onde se encontra o iaô através do barulhinho que produz.
[6] Gargantilha confeccionada com 8 fiadas de miçangas, entremeadas de firmas, todas na cor do orixá que está sendo “feito”. O quelê simboliza a indissociação entre o orixá e o iniciado.
[7] Colares feitos de 16 fiadas de miçangas com um único fecho cuja medida, como os inhãs, vai até a altura do umbigo. Cada iaô deve possuir, via de regra, um delogum de seu orixá principal e outro do orixá que o acompanha em segundo plano. No candomblé essa associação nada tem a ver com o “pai e mãe” da umbanda. Nada impede que um iaô seja filho de dois “santos” homens ou duas “santas” mulheres.
[8] Serão banhados pelo sangue sacrificial.
[9] O processo de iniciação inclui além da feitura três outras obrigações: de 1, de 3 e de 7 anos (6 para os filhos de Xangô), quando enfim o neófito pode se dizer iniciado, estando apto, inclusive, a iniciar outras pessoas. A partir de então deixa de ser iaô para tornar-se um ebomi (corruptela de egbon + mi = irmão mais velho)