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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Mãe Menininha do Gantois

Neta de escravos, Maria Escolástica da Conceição Nazaré (nascida a 10 de fevereiro de 1894 na capital baiana) foi escolhida na infância pelos santos do candomblé como mãe-de-santo do terreiro fundado pela avó.
Ainda criança, sem conhecimento suficiente para assumir o posto mais alto na hierarquia da religião - o de ialorixá, que dita as regras e comanda todo o funcionamento da casa - foi iniciada nos rituais pela tia Pulquéria, sua antecessora.
Era então uma moça quieta e franzina, e não escapou do apelido que a acompanhou pelo resto da vida.
Aos 28 anos, assumiu definitivamente o terreiro.
“Quando os orixás me escolheram eu não recusei, mas balancei muito para aceitar”, contou certa vez.
Na época, o candomblé vivia uma fase de perseguição a paus e pedras. Relegados ao submundo religioso, os rituais terminavam subitamente com a chegada da polícia.
“Vem olhar, doutor” A partir da década de 30, a restrição arrefeceu, mas uma Lei de Jogos e Costumes exigia que o candomblé só fosse celebrado em horários específicos, com a autorização de uma delegacia específica.
Quando passava das dez da noite, lá vinham os policiais.
“Isso é uma tradição ancestral, doutor”, dizia a ialorixá ao delegado, com sua paz interior que pouco a pouco se apoderava dos outros.
“Venha dar uma olhadinha o senhor também.”
E o jeito melindroso de Mãe Menininha não só evitou o fechamento do terreiro, como venceu a resistência religiosa do chefe da Delegacia de Jogos e Costumes, que escutou o chamado dos santos e se tornou um praticante da religião depois da extinção da lei, em meados dos anos 70 - a própria Mãe Menininha foi uma das principais articuladoras para o término das proibições.
Como outras crenças, no início do século a religião afro-brasileira também era carregada de conservadorismo.
Passar em frente de uma mãe-de-santo sem baixar a cabeça era grave ofensa para os seguidores da casa.
“Como um bispo progressista na Igreja Católica, Menininha modernizou o candomblé sem permitir que ele se transformasse num espetáculo para turistas”, analisa o professor Cid Teixeira, da Universidade Federal da Bahia.
Informal e bonachona, não hesitava em abrir as portas do Gantois para brancos e católicos - uma abertura que, em muitos terreiros, ainda hoje é vista com certo estranhamento.
Programa evangélico Ecumênica, Mãe Menininha nunca deixou de assistir à missa, numa prova de que o sincretismo religioso da Bahia não é mero chavão. Podia comungar pela manhã e celebrar os rituais do candomblé à noite.
No meio tempo, cuidava das duas filhas - Cleusa e Carmen - e coordenava todas as atividades do terreiro.
Não eram poucas, já que dentro do próprio Gantois criavam-se galinhas e cultivava-se milho. Sem cobrar um tostão, passava o dia atendendo seus seguidores.
Para dar uma trégua aos santos, entregava-se de corpo e alma a pequenos prazeres. Cuidava com esmero da vasta coleção de objetos de louça, presentes dos filhos-de-santo ilustres.
Quando estava assistindo aos capítulos da novela Selva de Pedra, ninguém arriscava importuná-la.
E grudava no rádio colocado no criado-mudo do quarto para escutar programas evangélicos e música popular - uma de suas cantoras preferidas era Maria Bethânia, ainda hoje frequentadora do Gantois, junto com o irmão Caetano Veloso.
Por trás das poderosas lentes dos óculos da mãe-de-santo havia uma mulher de força inabalável.
Mais que superar preconceitos e afirmar o candomblé como símbolo da cultura negra, abriu a seita para novos seguidores.
Mais que ser católica convenceu os bispos a permitir a entrada nas igrejas de mulheres com os tradicionais vestidos do candomblé. Vestidos que ela mesma exibia com elegância: brancos para Oxalá, dourados para Oxum e azuis para Oxóssi.
Sucessora Com sua paciência invejável, não se cansava de tirar dúvidas sobre o candomblé.
“Deus? O mesmo Deus da Igreja é o do candomblé. A África conhece o nosso Deus tanto quanto nós, com o nome de Olorum. A morada Dele é lá em cima, e a nossa cá embaixo”, explicava.
Mãe Menininha morreu a 13 de agosto de 1986, aos 92 anos. Sua sucessora foi a filha Cleusa - que morreu no final do ano passado. A nova ialorixá do Gantois será escolhida até novembro, numa cerimônia que pode durar até um mês.
Recusava-se a beber Coca-Cola porque tinha ouvido dizer que o refrigerante era bom para desentupir pia de mármore e para limpar cano de bateria de carro.
“Se eu tomar esse negócio o efeito vai ser o mesmo em mim!”, dizia. “E não gostava que os outros bebessem”, completa a filha Carmen.
Maria Escolástica da Conceição Nazareth esteve à frente do Gantois por 64 anos e foi a mais conhecida Iyalorixá do Brasil.
Era uma pessoa que sabia como lidar de um jeito muito especial com os seres humanos.
O Ile Iya Omi Axé Iya Masse, conhecido como Terreiro do Gantois, talvez seja o único no Brasil que preserva em sua direção uma descendente direta das africanas fundadoras do primeiro candomblé de origem ioruba, o Ile Axé Aira Entile, fundado no século XIX no Bairro da Barroquinha, em Salvador.
Após uma separação na direção da citada casa inicial, foi fundado em 1849 o Terreiro do Gantois por Maria Júlia da Conceição Nazareth, avó de mãe Meninha.
Quando de seu falecimento, foi sucedida, em 1918, por Pulchéria, tia de Mãe Menininha, que faleceu em 1818, deixando o posto para a sobrinha Mãe Meninha, que segundo dizem, tinha esse nome por ser muito miúda.
Mãe Menininha faleceu em 13 de agosto de 1986, sendo sucedida por Mãe Cleusa de Nanã, sua filha mais velha. Com seu falecimento, hoje o Gantois é presidido pela filha mais jovem de Mãe Menininha, Mãe Carmem de Oxalá.
Por ser somente sucedido por hereditariedade, e não por outros membros do terreiro, o Gantois desfruta de uma particularidade que o diferencia dos demais.
Mãe Menininha, apesar de batizada pelo nome de Maria Escolástica da Conceição Nazareth, não professava sua religião com sincretismo.
Há algumas polêmicas a respeito do Gantois ser tão famoso por ser sincrético, no entanto, observa-se que apenas que respeitamos e acreditamos que Deus é um só, não importa em que idioma é falado o nome do criador.
O Gantois herdou esse nome de um francês que doou o terreno onde foi erguido o terreiro.
Mãe Menininha era um exemplo a ser seguido de mulher afro-descendente, pois era uma pessoa muito à frente do seu tempo.
A humildade, a doçura e o pulso firme, quando necessário, fez dela uma grande personalidade, nada abalando sua fé nessa religião e cultura de resistência, até hoje perseguida por uns e não compreendida por outros.

Doce criatura

Rica em generosidade, mãe Menininha mantinha um comportamento ético que a tornou conhecida em todo o mundo.
Deve ter sido na beira de algum dos antigos córregos que atravessavam a cidade, talvez observando o líquido que jorrava de uma das dezenas de fontes de Salvador ou até sentada numa das margens do Dique do Tororó que a jovem Maria Escolástica da Conceição Nazareth descobriu que, para ser uma pessoa honrada, justa e feliz, precisava apenas conduzir a sua vida da mesma forma que as águas buliçosas de um rio.
Que deveria contornar os obstáculos no seu caminho com suavidade, manter-se tranquila mesmo frente às mais inesperadas correntezas e nunca desistir de ir em frente seguindo o seu caminho.
Mas, principalmente, oferecer sempre o melhor de si a todos àqueles que a procurassem. Escolástica seguiu à risca esses conselhos, trazendo assim tanta prosperidade à sua vida e à daqueles que a cercavam, que o seu nome correu o mundo.
Homens e mulheres vieram de todas as partes para conhecê-la e tentar aprender como é que se faz para nunca deixar de ser límpida como uma menina, como ela, a mãe Menininha que morava no Alto do Gantois.
Ela era filha de Oxum, a divindade que vive nas águas doces, que controla a fecundidade e, portanto, a vida.
Como sempre acontece com as regidas pelo orixá, mãe Menininha irradiava doçura e beleza, mas também conseguia equilibrar de uma forma perfeita a generosidade, sem deixar de ser enérgica, e a sabedoria, sem ser arrogante.
Desde muito cedo ela entregou-se totalmente aos encantados e foi abençoada por eles.
"Uma pequena garota de cabelos cacheados e loiros vinha chamá-la para brincar. Ela aceitava e as duas iam juntas para a praia, onde o brinquedo era sempre o mesmo: os búzios".
Esse foi um sonho recorrente durante a vida de mãe Menininha do Gantois:
"Acho que era a forma de Oxum, de Olodumaré transmitir a ela o conhecimento do jogo dos búzios", afirma a sua neta, Mônica Millet.
Bisneta, sobrinha e filha de ialorixás, mãe Menininha conduziu durante 64 anos os destinos do Gantois, que chegou a ser o terreiro de candomblé mais respeitado do Brasil.
Nascida no século XIX, ela cresceu entre os homens e mulheres africanos que criaram o candomblé no Brasil, aprendendo com eles os antigos costumes, os rituais e a língua ioruba.
Precisou de coragem e diplomacia para fazer o seu terreiro sobreviver à perseguição policial aos cultos afros que vigorou até o início do século XX.
Até que, gradativamente, viu a sua religião ser aceita e até despertar curiosidade entre pessoas de todos os cantos. A dificuldade, então, passou a ser continuar receptiva com quem a procurasse, sem permitir a exploração do que, para ela, era sagrado.
Primeiro mãe Menininha encantava os olhos de quem se aproximasse dela com as suas cascatas de colares, suas batas bordadas e saias suntuosas, sentada num verdadeiro trono.
Depois, acolhia o visitante com uma voz meiga e palavras gentis. Aos poucos, ia desfazendo todas as reservas que ainda houvesse, com seus conselhos sábios, tomando sempre o cuidado de amenizar o que pudesse assustar, de acrescentar esperança, de apresentar soluções.
Presidentes da República, diplomatas, costureiras, artistas, intelectuais, médicos, padres, pais-de-santo, jornalistas, funcionários públicos, vendedores ambulantes e desempregados revezavam-se dia após dia aos pés da sua cama, de onde ela praticamente não saía nas últimas décadas da sua vida.
Ela recebia a todos e se divertia. Conversava sobre a vida, fazia novos amigos, ganhava presentes, contava histórias para as crianças e tentava sempre dividir um pouco da sua alegria e serenidade com quem estivesse ali em busca de solução para as suas angústias.
Às vezes, fazia isso com palavras, outras, só com um olhar. Como nunca conseguia desfrutar da solidão, quando precisava aquietar o seu próprio coração, apenas abaixava a cabeça e silenciava os ouvidos. Depois, tudo recomeçava.
Para a sua filha mais nova, Carmem, a única palavra que define o que havia de tão especial e singular em sua mãe é "carisma".
Um dom especial, uma força divina que a tornava capaz de ouvir tantas lamúrias e permanecer tranquila, de receber tantos elogios e continuar serena, de presenciar tanto sofrimento sem tornar-se amarga.
Um dia, quando já tinha dado todos os conselhos e abençoado todos os seus filhos, ela partiu desse mundo. Isso aconteceu há 15 anos, em agosto de 1986.
Naquela época, houve muita tristeza, muitas lágrimas, porque os seus milhares de amigos e centenas de filhos-de-santo não perceberam que mãe Menininha já tinha se encarregado de se manter viva entre nós para sempre.
Mas hoje em dia muitos já descobriram que, ao passar a sua vida sem prestar atenção em si mesma, fazendo da felicidade alheia a sua própria felicidade, mãe Menininha estava lhes mostrando que, sempre que a generosidade, a alegria e a paz se fizessem presentes, ela também estaria entre nós.

Lenda de Oxum

No princípio do mundo, Olodumare mandou os orixás organizarem a terra. Todos eles faziam reuniões, mas proibiram as mulheres de participar das decisões.
Contrariadas, elas foram conversar com Oxum, a mais importante de todas as mulheres. Oxum ficou aborrecida com a desconsideração dos homens e decidiu puni-los mandando parar o mundo.
Desde aquele dia, nenhuma mulher pariu, nenhuma planta cresceu nem deu frutos.
Quando viram o que estava acontecendo, os homens foram desesperados, procurar Olodumare, que lhes perguntou logo:
"Vocês estão fazendo tudo como eu mandei e Oxum está participando das reuniões?"
Foi aí que eles compreenderam que, sem Oxum, sem a água doce, nada no mundo pode crescer e progredir.
Voltaram correndo, convidaram Oxum para participar de tudo e imediatamente o mundo voltou a florescer.

O que significa ser iniciado por mãe Menininha

Era o final dos anos quarenta do século passado, quando, não completados os meus 10 anos de idade, já gozava da virtude de conviver com "minha mãe Menininha". “Dessa forma, eu a tratava, porque aprendi a fazê-lo, com d. Edite, minha mãe de sangue, com Sr. Nezinho (Babalorixá), um dos filhos-de-santo mais queridos dela com minha tia, a mãe Bida de Yemanjá”.
Exatamente, à mãe Bida, minha tia de sangue, irmã de d. Edtite, devo a virtude a que me referi. Acompanhava-a, de Muritiba até Salvador, quando das suas vindas do Rio de Janeiro - onde morava - com o objetivo de participar das festas do calendário religioso do terreiro do mencionado babalorixá.
Então, ela, aqui na capital, "corria coxia": ia da Casa Branca do Engenho Velho, passando pela Casa de Oxumarê e chegando ao Ilê Axé Opô Afonjá.
Nesse proceder, poupava-me, talvez pela minha pouca idade, e me deixava aos pés de "minha mãe Menininha" que, assim, tomava conta de mim.
É a minha fase de início de uma amizade com Cleusa e Carmen (minha estimada "Nenem", como até hoje a chamo).
“ Lindas meninas e queridas amigas de mocidade, presentes que recebi de “minha mãe Menininha”, por toda a vida dela, pela profícua vida de minha querida” mãe Cleusa”, de tantas saudades e, até hoje, mercê de Deus e dos "orixás", de Nenen, tão solidária quanto a sua mãe e a sua irmã.
Neste ambiente, fiz meu "santo", tornei-me "Opo otun Lolale" do Gantois, por designação de minha mãe Menininha", como uma extensão do "posto" que, assim, conjuntamente, exerci no” Axé Ti Yemanjá Ilê Maro Ketu", de "mãe Bida".
Só há pouco mais ou menos cinco anos, recebi o posto de Baba Egbe", do Gantois outorgado por "mãe Cleusa", cumprindo decisão dos encantados.
Exerço o cargo com responsabilidade que aprendi a ter, com o zelo das coisas do "Axé", ensinado por essas ialorixás e babalorixás, cujo conteúdo, dessa responsabilidade, atingi com a humildade própria da hierarquia que tem de ser observada em relação àqueles que me são superiores e aos demais irmãos que devem obediência ao mister.
“ O aprendizado estende-se a uma prática da virtude, mediante a conscientização da paz espiritual de quem tendo recebido sempre “omin” sobre o” ori” não pode ter o desespero de um despreparado espiritual quando as vicissitudes devam ser enfrentadas.
Esse aprendizado dá força, porque transmite segurança, à medida que facilita a propiciar o bem ao próximo, como se deseja para si mesmo.
Volto a lembrar da solidariedade, supra referida, de Cleusa e Carmen para dizer que todos recebemos esse padrão de comportamento das lições de "minha mãe Menininha" de quem tive a sorte de receber o axé com o qual se completou a minha iniciação na atividade religiosa.
Ser, assim, um iniciado sob as bênçãos de "minha mãe Menininha" significa ter herdado a sua tranquilidade para exercer essa atividade religiosa somente pelo caminho do bem, que ela dissemina com sua memória sábia que legou a todos os seus filhos-de-santo.
Afinal, em 1989, quando aqui esteve - por ocasião da II Conferência Mundial de Tradição dos Orixás e Cultura - o rei de "Ijebu Ode", considerado na Nigéria, não um sacerdote, mas alguém integrado ao sistema do direito divino dos reis, portanto, ele, uma divindade, sua majestade, ao ser indagado pelo repórter de tevê como considerava a "minha mãe Menininha"? Ele respondeu: "Como ela é respeitada no meu país: uma deusa".
Eis nessa reposta a síntese do que significa ter sido iniciado por ela e, assim, ter convivido por tantos anos em sua companhia: coexistência com uma deusa que me cobriu de paz, amor e, por isso, de felicidade, com a missão de transmitir a quantos se aproximem. Axé.

* Edvaldo Brito é babá ebé do Gantois, advogado, professor da UFBA e da Universidade de Mackenzie

fonte: artigos do Jornal Correio da Bahia
Agosto de 2001