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sábado, 1 de outubro de 2011

O culto ao Caboclo

Candomblé de caboclo

Divindades cultuadas pelos indígenas foram incorporadas a outras práticas religiosas
`Noé, Noé / Noé, sua barca é-vem / Vem cheia de caboclo / sozinha sem mais ninguém´
(Autor desconhecido)

No imaginário que envolve a religiosidade popular da Bahia, as divindades cultuadas pelos indígenas, pelos legítimos "donos da terra", logo seriam incorporadas às mais diversas práticas religiosas.
Tudo começou com a associação entre a religião católica e a mítica dos tupinambás, índios que habitavam a Bahia nos tempos de Cabral.
Mais tarde, viriam as divindades trazidas pelos escravos e, em seguida, a doutrina kardecista. Assim, santos, espíritos e orixás passaram a ocupar um grande panteão e a serem cultuados em um único espaço religioso na Bahia, dando origem aos chamados candomblés de caboclo.
Antes mesmo de Thomé de Sousa ancorar sua embarcação nas águas santas da Baía, já existia, no atual bairro da Graça, uma pequena capela. O templo religioso foi erguido a pedido da índia Catarina Paraguaçu, convertida ao catolicismo pelo marido, Diogo Álvares de Souza - o Caramuru.
A história do sincretismo religioso com divindades indígenas despertou logo no início da colonização portuguesa na Bahia, mais precisamente durante a criação da Aldeia de São Tomé, nas praias de Paripe, pelos padres jesuítas.
Tudo teria começado com uma grande confusão de nomes. Em uma pedra próxima à foz do Rio Matoim, na enseada da Barra de Aratu, se mostravam pegadas semelhantes às de pés humanos, que os tupinambás atribuíam a Zumé, o seu deus civilizador.
Quando os portugueses lá chegaram e conheceram a lenda indígena, acreditaram na semelhança fonética entre Zumé e Tomé, o apóstolo das Índias.
A Aldeia de São Tomé, outrora localizada onde hoje se encontra a antiga igreja que também leva seu nome, foi uma das 16 aldeias tupinambás criadas pelos jesuítas na primeira capital do país.

Legado banto

Após a aproximação entre santos católicos e divindades indígenas, a receita que deu origem aos candomblés de caboclo recebeu um ingrediente fundamental: a chegada dos negros bantos, sobretudo do Congo e Angola.
Com eles vieram o imaginário criado a partir dos inquices, ancestrais ligados ao chão. Na Bahia, os bantos conheceram os novos "donos da terra", e a aproximação entre as duas manifestações foi logo constituída.
Mas, embora haja semelhanças, existem também muitas diferenças reservadas no culto aos orixás e caboclos, de acordo com Jocélio Teles dos Santos, principal pesquisador dos candomblés de caboclo baianos, e atual diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao/Ufba).
Assim, a distinção estaria marcada pelo fato de o caboclo ser uma entidade mais "firme, ligada ao chão", enquanto o orixá seria "o dono da cabeça, a energia que rege, que dirige o corpo".
A união das duas etnias, ambas oprimidas, significou não só a necessidade de proteção, mas o conhecimento das ervas e raízes, de domínio dos pajés, e que eram absolutamente necessários para os rituais dos negros.
Os primeiros contatos entre os africanos bantos e os índios ocorreram, provavelmente, ainda no tempo dos quilombos. Mas, de acordo com Edison Carneiro, em sua pesquisa sobre o sincretismo religioso na Bahia, ele próprio chegou a observar danças e cânticos de caboclos também nos terreiros mais tradicionais de origem iorubá, como o Gantois, a Casa Branca e o Ilê Axé Opô Afonjá.
O fato é que nos candomblés da Bahia os caboclos são considerados como os primordiais donos da terra, e por isso detêm um lugar de destaque nas celebrações religiosas. Nas casas específicas ou assumidas como "de caboclo", as palavras do universo mágico-religioso misturam também o português a palavras africanas e a algumas expressões tidas como de origem tupi-guarani.
A maior representação pública da crença dos baianos no poder do caboclo se dá durante os festejos em comemoração ao Dois de Julho - data da Independência da Bahia.
Contrariando as elites baianas do século XIX, que pretendiam manter um clima solene durante os festejos cívicos, negros, índios e mestiços adoravam a imagem do caboclo e faziam seus batuques em locais públicos, o que era considerado, pela imprensa da época, um ultraje à "Augusta Pessoa de Sua Majestade o Imperador".
Durante o batuque, realizado onde os carros da Independência ficavam expostos ao público, na Praça da Sé, era feito o chamado "samba de caboclo", com o mesmo toque dos candomblés que cultuam as entidades de origem indígena.
É significativa a participação de parte dos adeptos do candomblé de caboclo na ala de frente, representada pelos "índios", que na verdade são populares que se vestem com cocar, tangas de palha, colares e braçadeiras, para desfilar logo atrás dos "carros triunfais".
Isso era bem tolerado, mas o que sempre causou repulsa à ideologia oficial era a colocação de oferendas - os ebós - aos pés do caboclo, o que tem desaparecido devido à presença ostensiva de policiais durante o cortejo cívico.
Quando os carros ficam estacionados, os devotos do candomblé geralmente se colocam em frente ao caboclo, encostam os dedos médio e indicador no carro e, em seguida, tocam a própria cabeça na frente, do lado direito e na nuca. Alguns tocam a fita que enfeita o carro e rezam. Outros jogam flores e há ainda aqueles que tentam levá-las para casa, acreditando em seus poderes especiais.
"Eu sempre venho. Tem mais de dez anos que eu venho sempre agradecer, rezar e pedir as coisas para o caboclo. E ele tem me atendido. O caboclo trabalha pesado", revelou o ambulante Firmino Bispo dos Santos, encontrado no momento em que fazia orações, durante os festejos que marcam o retorno do caboclo do Campo Grande à Lapinha.
Na Bahia, os caboclos são tidos como senhores soberanos da terra, adorados como heróis míticos da libertação. Seja em uma festa cívica, nas celebrações em sua homenagem na igreja, ou no culto maciço realizado pelo povo-de-santo, o caboclo talvez seja o principal exemplo da mistura de crenças que reúne elementos sagrados e profanos no cenário religioso que compõe as festas populares da Bahia.

Caboclos e divindades africanas

Orixás Encantados
Oxalá Maçangana, Kaigonga
Oxossi Jecó Edé
Ogum Unicombe Rouxo Uricombe
Obaluaê Hiponga Amatomba
Nanã Min Naná Kaolokai
Oxum Janaína, Kicimbá
Xangô Zazi Omano
Iansã Oiá Quitanba
Iemanjá Maré Ici Maré
Fonte: O Dono da Terra - O caboclo nos candomblés da Bahia. Livro de Jocélio Teles dos SantosO 

Caboclo na Religião Afro-Brasileira

As entidades espirituais não africanas cultuadas em terreiros brasileiros (de Candomblé, Xangô, Mina, Batuque e Umbanda) têm sido classificadas, em conformidade com a fábula das "três raças formadoras da sociedade nacional" de quem fala Roberto da MATA (1981:59-63), nas seguintes categorias:
1) caboclos (representantes da população nativa/indígena ou de segmentos populares da sociedade brasileira ligados a área rural);
2) pretos-velhos (representantes dos escravos africanos);
3) e senhores ou "gente fina" (representantes do colonizador europeu - branco).
Os caboclos parecem mais antigos e surgiram, tanto na Bahia como no Maranhão (Nordeste do Brasil), em terreiros nagôs (iorubanos) e bantus (congo, angola, cambinda) .
Mas, desde o final do século passado, existiam, tanto no Estado da Bahia quanto no do Maranhão, terreiros de caboclo, como o da Turquia, em São Luís (capital do Maranhão). Os pretos-velhos são mais ligados à Umbanda (BROWN, D.1994; GREENFIELD, S.M.1995) e mais cultuados no Sudeste (principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo) do que no Nordeste.
No Maranhão são geralmente homenageados no dia 13 de Maio, data em que se comemora a abolição da escravidão africana no Brasil.
Os brancos/senhores são também conhecidos na Umbanda e muito antigos na religião afro-brasileira do Maranhão, onde foram relacionados a orixás (divindades africanas), como o Rei Sebastião, associado a Xapanã.
Existem ainda na religião afro-brasileira, como um subtipo de caboclo ou constituindo outra categoria de entidade espiritual surgida no Brasil, os boiadeiros.
Estes, mais conhecidos em terreiros de Umbanda africanizados (influenciados por Candomblé). São, às vezes, também chamados de "capangueiros", para distingui-los dos "flecheiros" (de origem indígena, também chamados caboclos "de pena").
Essas denominações especiais têm relação com as diferenças de sua caracterização por eles apresentadas nos rituais religiosos - os médiuns incorporando os primeiros usam capanga (bolsa de couro de boi) e os segundos usam flecha e/ou tanga de penas (LODY, 1977).
Os boiadeiros, apesar de ligados a atividades rurais, como são no Brasil muitos descendentes de índio, parece que geralmente não têm origem indígena e, às vezes, são apresentados em letras de músicas cantadas em rituais como sendo de Angola ou da Hungria.
A sua representação como angolanos reforça a idéia de que o surgimento das entidades espirituais não africanas nos terreiros brasileiros tem muito a ver com a cultura bantu ou com os Candomblés bantu.
Já a sua representação como provenientes da Hungria sugere sua associação a ciganos - povos nômades oriundos, provavelmente, do Egito, Índia e Caldéia, que foram escravizados ou perseguidos na Hungria e em diversos países da Europa, e que foram muito numerosos na Hungria, onde, em 1761, houve uma frustrada tentativa para a sua sedentarização (SANT'ANA, 1983:30).
São conhecidos no Brasil desde o Século XVI (SANT'ANA, 1983:33) e aparecem em São Luís, nas representações natalinas dos terreiros, como tendo vindo do Egito, e em rituais por eles realizados para entidades femininas, como provenientes da Espanha.

"Boa noite prá quem é de boa noite,
bom dia prá quem é de bom dia,
A benção, meu pai, a benção
Sou boiadeiro, filho da Hungria".
(Samba Angola - Casa Fanti-Ashanti).

Na religião afro-brasileira do Maranhão o termo caboclo designa não apenas entidades espirituais indígenas, como a Cabocla Jurema e o Caboclo Velho, ou ligadas à criação de gado, como as entidades da família de Légua-Boji-Buá - entidade que comanda a Mata de Codó (manifestação religiosa afro-brasileira típica do interior do Estado do Maranhão, de grande influência nos terreiros da capital e do Norte do Brasil) - e os boiadeiros recebidos a partir dos anos oitenta na Casa Fanti-Ashanti, quando esta introduziu o Candomblé.
No Maranhão o termo caboclo designa também turcos (como a Cabocla Mariana), europeus de origem nobre (como Antônio Luiz, vulgo Corre-Beirada - filho de Dom Luís, Rei de França) e encantados das matas (florestas), como os Surrupiras, sem ligação com a pecuária e de origem indígena discutível. Além do nome Surrupira lembrar Curupira (ser da mitologia tupi que protege a mata e assusta os caçadores), em algumas casas os Surrupiras são denominados Curupiro, ou mesmo, Curupira.
Contudo, nos terreiros de São Luís, os Surrupiras são conhecidos como entidades da mata do "Gangá" e classificados, por Mãe Elzita, como "Fulupa", termos que parecem remeter à África - aos Felupe (povo da Guiné Bissau, de quem fala SILVA/1983) e a uma "nação" africana muito conhecida em Cuba - Gangá (GUANCHE, 1983).

"Eu sou Caboclo Guerreiro, Guerreiro de Alexandria, Guerreiro é homem nobre, filho do Rei da Turquia (Terreiro de Iemanjá - Pai Jorge)

O Turco no Tambor de Mina: Sincretismo Afro-Ameríndio?

No Tambor de Mina os turcos são numerosos e muito conhecidos (FERRETTI,M. 1989:202; 1992:56; 2000:128). Pertencem á família do Rei da Turquia - o Ferrabrás de Alexandria, da "História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França", trazida para o Brasil pelos portugueses, depois de muito difundida na Península Ibérica, e representada em danças folclóricas que representam batalhas entre mouros e cristãos, como as Cheganças (CASCUDO, 1962:184-185).
Apesar dos turcos adotarem na Mina, freqüentemente, nomes indígenas, não têm origem ameríndia.
Segundo Pai Euclides, o Terreiro da Turquia foi fundado em 1889, por Anastácia Lúcia dos Santos, negra maranhense de Codó. Anastácia tinha como orixás de cabeça: Xangô e Vó Missã (Nanã) e foi preparada na Mina por um africano ou descendente de africano conhecido por Manoel Teus Santos, que tinha terreiro em São Luís.
Apesar de cultuar orixás, abriu seu terreiro para a entidade espiritual denominada Rei da Turquia, que veio a se tornar ali chefe de uma grande família de entidades caboclas.
Não obstante, o Terreiro da Turquia ficou conhecido como de "nação" taipa (tapa?) e os turcos tiveram ali, como padrinho, o vodum Averequete.
Antes da abertura da Turquia os turcos já eram conhecidos em terreiros maranhenses e, há muito, como personagens da popular História do Imperador Carlos Magno e os doze Pares de França e de representações folclóricas nela inspiradas, como as Cheganças.
O exemplar daquela obra literária que encontramos no Terreiro da Turquia em 1969, com Dona Zeca, filha da fundadora, foi a ela presenteado por sua madrinha, em 1934.
Conforme ela nos informou, sua madrinha, além de organizar Cheganças, recebia Dom João - rei português, conhecido na Mina como primo do Rei da Turquia. Na Mina a história dos turcos contada no terreiro é uma versão atualizada daquela narrativa.
De acordo com a mitologia da Mina maranhense, o Rei da Turquia, depois de uma batalha contra os cristãos, veio para o Brasil no navio de seu primo Dom João.
Afastando-se dele, entrou na aldeia de Caboclo Velho, o índio Sapequara (o primeiro caboclo a "bradar" nos terreiros de Mina), onde foi bem recebido e terminou ficando. Como misturou depois sua família à dele (cada um adotou filhos do outro), passou a vir nos rituais de Mina com o grupo dele (como caboclo, e não como nobre). Por essa razão, apesar de serem nobres e de não terem origem indígena, os turcos são recebidos na Mina como caboclos.
Embora as histórias de batalhas entre mouros (ou turcos) e cristãos tenham sido encenadas com índio na catequese dos jesuítas, e seja provável que descendentes de índios tenham aberto terreiros em São Luís, a família do Rei da Turquia se expandiu Dentro do processo sucessório, coube à sua neta, Maria Lúcia Santana Neves, sentar na cadeira que pertenceu à velha senhora.
Apesar de muito nova ainda, "Mãe Lúcia" tem demonstrado competência na difícil tarefa de administrar tão rica herança religiosa e cultural, cujo imóvel foi tombado pelo IPAC - Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, no dia 15 de abril do corrente ano, em cerimônia presidida no local, pelo Governador Paulo Souto. É o primeiro terreiro tombado pelo Governo do Estado.
A festa maior é para Gomgombira (o dono da casa) e Quissambo, realizada sempre num final de semana próximo a 23 de abril, dia dedicado ao Orixá Guerreiro. No sábado, os atabaques batem em louvor ao caçador guerreiro, ocasião em que são feitas as confirmações.
No domingo é a vez da Rainha das Águas Doces que tem direito a cortejo à tarde com oferendas no Abaeté.
Obedecendo a tradição da antecessora, outras festas são realizadas: em agosto, no dia 10, para o tempo, dia 16, para Obaluaiê, em dezembro é a vez de Bamburucema (Yansã), que tem caruru no dia 04.
Sendo também candomblé de caboclo, há festas por ocasião dos festejos de 02 de julho.
Na Mina a partir de um terreiro definido como de "nação taipa", fundado no final do século passado por uma mulher negra, ligada por laços de compadrio ao vodum Averequete e iniciada na religião afro-brasileira por africano, ou descendente de africano.
Os turcos do Tambor de Mina são caboclos, mas não são índios aculturados ("civilizados"), descendentes de índios, e, muito menos, ancestrais ou seres da mitologia indígena, como se pensava que fossem todos os caboclos (BASTIDE, 1974:19-28).
O Terreiro da Turquia não foi fundado por curador ou pajé (chefe de culto afro-ameríndio, sem "fundamento" na religião afro-brasileira). Foi aberto por uma descendente de africanos, iniciada na religião afro-brasileira que, sendo amiga particular da conhecida Mãe Andreza, chegou a morar na Casa das Minas-Jeje (dahomeana).
A idéia da origem indígena (generalizada) das entidades não africanas ou classificadas como caboclo, tão recorrente na obra de pesquisadores e no discurso de pais-de-santo, tem sido, às vezes, reforçada pela interpretação apressada de elementos de rituais observados, onde elas são recebidas em transe mediúnico e onde podem aparecer com nomes e, ás vezes até, com trajes indígenas.
Um exame mais aprofundado do perfil daquelas entidades, uma análise das letras de músicas cantadas por elas ou para elas, e uma leitura atenta de relatos míticos recolhidos naqueles terreiros, podem levar o pesquisador a encara-las de modo bastante diferente.
Na Mina maranhense o nome das entidades espirituais e o uso por elas, nos rituais, de peças de indumentária indígena, não são suficientes para atestar sua origem ameríndia, embora falem da valorização do índio no Tambor de Mina e sugiram alguma conexão com ele.
Assim, a explicação da adoção de nomes indígenas por turcos não deve ser buscada em sua origem étnica ou em um possível empréstimo cultural indígena, e sim, no contexto histórico em que surgiram no Tambor de Mina enquanto entidades espirituais. A atribuição de nomes indígenas a vários filhos do Rei da Turquia pode ser interpretada:
1) como estratégia utilizada no Brasil por descendentes de africanos, para desviar a atenção da classe dominante (católica) de sua origem pagã, que deve ter sido responsável por sua associação no folclore brasileiro ao demônio (especialmente Ferrabrás);
2) como decorrente da necessidade de afirmação de sua identidade brasileira - de encantados que começaram a ser recebidos no Brasil, o que deve ter facilitado a aceitação da abertura de mais um terreiro de Mina em São Luís, procedimento ainda hoje proibido na Casa das Minas-Jeje e sempre desencorajado na Casa de Nagô.
A adoção pelos turcos de nomes de índios brasileiros (muitos deles, ainda hoje, pagãos como eles) deve ter muito a ver com a idealização da população nativa ocorrida após a independência do Brasil do jugo português que, segundo Bastide, foi também observada em outros países da América do Sul (BASTIDE, 1974).
Pode ser também explicada pela abertura do Terreiro da Turquia, um ano após a abolição da escravatura no Brasil (1889), quando é possível que os ex-escravos e seus descendentes tenham sido mais motivados a se afirmarem como brasileiros do que como africanos.
A identidade brasileira da família do Rei da Turquia aparece nas cores escolhidas para simboliza-los no Tambor de Mina:
1) o vermelho (que, há muito, representava os turcos nas danças mouriscas e que, certamente, tem a ver com o seu caráter belicoso), e que era também associado a índios americanos ("peles vermelhas");
2) o verde e o amarelo (cores que representam o Brasil, desde que deixou de ser colônia portuguesa).
A associação dos turcos à nação brasileira e ao índio (nativo) aparece também no discurso de Pai Euclides quando trata do mito de Tabajara - herói da guerra contra o Paraguai (1865-1870), da qual participaram muitos negros na esperança de obterem alforria.
Casado com a índia Bartira que, encontrando-o no campo de batalha, cuidou de seus ferimentos, o turco Tabajara tornou-se chefe de muitas aldeias indígenas e contribuiu para sua pacificação e civilização.
Ao serem apresentados na Mina como encantados da "nação taipa" (africana) associados a Caboclo Velho (índio), os turcos foram vinculados tanto à África quanto ao Brasil, desviando as atenções de sua origem pagã e permitindo ao Terreiro da Turquia a conquista de um espaço no meio religioso afro-maranhense, dominado pela Casa das Minas-Jeje (consagrada a Zomadonu) e pela Casa de Nagô (consagrada a Xangô).
Como naqueles terreiros abertos por africanos os turcos não eram "donos da casa" e nem "donos da terra" (nativos do Brasil), só puderam se expandir na Mina após a abertura de um terreiro para eles.
Mas, no Tambor de Mina do Maranhão existem outros caboclos que podem ser mais associados do que os turcos à cultura indígena, como os Surrupiras do Gangá, menos aceitos do que eles nos terreiros antigos da capital, mas também muito conhecidos nos terreiros de Mina.
O nome Surrupira do Gangá fala também de sua vinculação à África (Gangá) e à cultura indígena. O Surrupira é, ou tem a ver, com o Curupira do folclore de origem indígena - negrinho da floresta, sem origem humana, que tem os pés voltados para trás, que protege a mata e a caça, e que é temido pelos povos da floresta (CASCUDO, 1962: 262).
O Surrupira do Tambor de Mina, tal como o Curupira do folclore brasileiro, apresenta características da entidade espiritual indígena da floresta, de mesmo nome, temido pelos índios, de quem falou no século XVI o Padre José de Anchieta, em suas cartas (LEITE, 1954):
Perigoso e temido, responsável por rumores inexplicáveis, pavores súbitos, morte, desaparecimento, e perda de caminho por caçadores na floresta. É sobre essa complexa entidade que pretendemos centrar nossa atenção em próximo trabalho.

Conclusão

O caso dos turcos no Tambor de Mina demonstra a dificuldade de se fazer grandes generalizações na religião afro-brasileira e os riscos de se interpretar a existência de todas as entidades caboclas em termo de sincretismo afro-ameríndio. Levando-se em conta os dados aqui apresentados, dificilmente se poderia considerar aquelas entidades como seres da mitologia ou ancestrais indígenas.
A mitologia dos turcos no Tambor de Mina tem como matriz principal gestas (estórias) de Carlos Magno e não mitos de índios brasileiros, como o do Curupira que, certamente, tem relação com o do Surrupira encontrado do Tambor de Mina.
Os turcos não poderiam ser também encarados como entidades espirituais introduzidas do Tambor de Mina por curador (pajé), uma vez que a fundadora do Terreiro da Turquia, além de negra, foi preparada em casa de "fundamento" africano ("taipa").
Mas, é preciso lembrar que o mito dos turcos na Mina não é mera reprodução da "História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França", que continua a ser narrada em folhetos de Cordel, vendidos em São Luís e nas feiras de nordestinos, e em representações folclóricas (como as Cheganças).
No Tambor de Mina do Maranhão, Almirante Balão, Ferrabrás de Alexandria, Princesa Floripes não são apenas personagens literários ou de representações folclóricas, são encantados que entraram na aldeia do índio Sapequara, que lutaram na Guerra do Paraguai (episódios alheios àquele texto literário, que foram acrescentados a ele no Brasil, provavelmente, no Terreiro da Turquia).
Na Mina aquela narrativa pode ser também enriquecida por episódios ocorridos nos terreiros, com os filhos-de-santo em transe com eles, como a relação deles com o vodum Averequete, padrinho de todos os turcos no Terreiro da Turquia.
A presença da cultura indígena na Mina aparece mais claramente nos rituais de Cura ou Pajelança realizados em vários terreiros de São Luís. Mas a existência da Cura nos terreiros, geralmente, só é considerada sincretismo afro-ameríndio se o ritual apresentar elementos do Tambor de Mina e for considerado uma mistura de mina e Cura.

fonte:
Odudua: A Presença de Entidades Espirituais não Africanas na Religião Afro-Brasileira
Por: Mundicarmo Ferretti
em Quinta, 05 de Dezembro de 2002
17:32:02 (Brasília)