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domingo, 20 de maio de 2012

Espíritos

As Religiões no Rio - João do Rio
No mundo dos feitiços - A Casa das Almas

Um dos espíritos, porém, sentou-se numa espécie de trono de mágica.
Como por encanto a dança cessou e naquela pávida atmosfera, em que o medo gemia, as mulheres de borco, os homens contorsionados, o negro fantasiado guinchou do alto.
- Guilhermina ocê percisa gostá de Antônio... José tem que fazê ebô para espírito mau.
Chica, um home há de vi aí, ocê vai com ele...
- Veja V. S. a chantage, murmurou Antônio.
Os negros recebem dinheiro antes dos homens e obrigam as criaturas pelo terror a tudo quanto quiserem. Por isso quem descobre o egum, morre.
A Chica, uma mulatinha, coitada! tremia convulsivamente, mas já outras, nuas, em camisa, sacudindo os membros lassos, ganiam de longe, batendo as varas num terror exaustivo.
- E eu? e eu?
- E eu? e eu?
- Ocê tá dereita, sua vida vai pr'a frente.
- E eu? e eu? gargolejaram outras bocas em estertores.
- Ocê está pra traz, percisa ebô.
Aproximei-me de um dos espíritos; cheirava a espírito de vinho; estava literalmente bêbedo.
Quando a cerimônia atingia ao desvario e já os espíritos tinham pastosidade na voz, caiu na sala, como um bedengó, Inhansam, um negro fingindo de santo materializado e, em meio do pavor geral, ao som das cantigas, esticou a mão sinistra, foi pedindo a cada criatura 16 obis, 16 orobôs, 16 galos, 16 galinhas, 16 pimentas-de-costa, 16 mil réis, um cabrito, um carneiro.
Ao chegar às meretrizes brancas, Inhansam ferozmente exigia peças de chita, fazendas e objetos caros.
A turba gritava toda: Inhansam! Inhansam! gente nova entrava na sala, e de repente, como todos se voltassem a um grito da porta, os espíritos desapareceram... Tinham fugido tranqüilamente pelo corredor.
- Está acabado, fez Antônio.
Os espíritos vão se despir, e voltam daí a pouco para ver se o pessoal acreditou mesmo...
A cena mudara entretanto.
Dissipado o sudário apavorado, todas aquelas carnes hiperestizadas erguiam-se ainda vibrantes para a bacanal.
O álcool e a queda na realidade estabeleciam o desejo.
Negros arrastavam-se para quintal, para os cantos, longos sorrisos lúbricos abriam em bocejos as bocas espumantes, risinhos rebentavam e negros fortes, estendidos no chão, rolavam as cabeças numa sede de gozo.
Há entre as negras uma propensão sinistra para o tribadismo.
Em pouco, naquela casinhola suja e mal-cheirosa, eu via como uma caricatura horrenda as cenas de deboche dos romances históricos em moda. Mais dois negros entraram.
- Então egum esteve bom?
- E eu que não cheguei em tempo...
- Veja, mostrou Antônio, lá está o Bonifácio Eruosaim, vendo se causou efeito fantasiado de bebê. Venha até o quarto do banquete.
Fomos. Antônio empurrou uma porta e logo nos achamos numa sala com garrafas pelo chão, pratos servidos, copos entornados, rolhas, os destroços de uma fome voraz. Num canto a Chica dizia baixinho para um lindo rapaz de calças bombachas:
- É você que o espírito disse?...
Quando reaparecemos o babaloxá murmurava:
- A festa está acabada, companheiros...
É não deixar de trazer o que Inhansam pediu.
Saímos então. Vinha pelo céu raiando a manhã.
Palidamente, na calote cor de pérola, as estrelas tremiam e desmaiavam. Antônio cambaleava. Chamei um carro que passava, meti-o dentro.
Em torno tudo dizia o mistério e a incompreensão humana, o éter puro, os vagalhões do mar, as árvores calmas.
Tinha a cabeça oca, e, apesar dos assassinatos, dos roubos, da loucura, das evocações sinistras, vinha da casa das almas julgando babalaôs, babaloxás, mães-de-santo e feiticeiros os arquitetos de uma religião completa.
Que fazem esses negros mais do que fizeram todas as religiões conhecidas?
O culto precisa de mentiras e de dinheiro. Todos os cultos mentem e absorvem dinheiro. Os que nos desvendaram os segredos e a maquinação morreram. Os africanos também matam.
E eu, perdoando o crime desse sacerdócio mina, que se impõe e vive regaladamente, tive vontade de ir entregar Antônio negro e a dormir à casa de Ojô, para que nunca mais desvendasse a ninguém o sinistro segredo da casa das almas.

João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
Domínio Público - Biblioteca Virtual de Literatura
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