Abrira-se uma porta, a da casa de jantar, e a crápula
entrava aos encontrões dando-se beliscões, com o olhar guloso e devasso.
Entramos também.
Como era razoável a desilusão de Carolino!
A missa-negra a que eu assisti, era uma paródia carnavalesca
e sádica, uma mistura de várias missas com invenções pessoais do sacerdote.
Havia frases do ofício da Observância, trechos sacrílegos do
abade Guibourg, a missa de Vintras, esse doido formidável, aparatos copiados
aos Ansanés da Síria e um desmedido deboche, o deboche do teatro São Pedro em
noite de carnaval, se à polícia não contivesse o desejo e as portas se
fechassem. Carolino tinha razão.
O erotismo ambicioso de outrora devia ser mais interessante.
Guibourg aspergindo de água benta o corpo nu da Montespan deitada nos
evangelhos dos reis, os pombos queimados, a paixão de Nossa Senhora lida com os
pés dentro de água, o cibório cheio de sangue inocente no centro das sensações,
tinham um fim. A missa de Ezequiel, o ofício supremo em que, além de Satã,
aparecem Belzebu, Astarob, Asmodeu, Belial, Moloch e Baal-Phagor, era
religiosamente terrível. A que os meus olhos viam, não passava de fantasia de
debochadas e histéricas necessitando do rifle policial e do chicote.
A casa de jantar estava transformada numa capela.
Ao fundo levantava-se o altar-mor, ladeado de um pavão
empalhado com a cauda aberta - o pavão simbólico do Vício Triunfal. Nos quatro
cantos do teto, morcegos, deitados em corações de papelão vermelho, pareciam
assustados. Panos pretos com cruzes de prata voltadas cobriam as janelas e as
portas.
Do altar-mor, que tinha três degraus cobertos por um pelego
encarnado, descia, abrindo em forma de leque, um duplo renque de castiçais
altos, sustentando tochas acesas de cera vermelha.
Era essa toda a luz da sala.
O bando tomou posições. Alguns riam; outros, porém, tinham
as faces pálidas, olheirentas, dos apavorados.
Nós, eu e o poeta, ficamos no fim. Um silêncio caiu.
Do alto, pregado a cruz tosca, uma escultura infame
pretendia representar Cristo, o doce Jesus!
Era um boneco torpe, de bigodes retorcidos, totalmente
excitado, que olhava os fiéis com um olhar trocista e o beicinho revirado.
- É horrendo.
- Se estamos na casa do horrendo! Guarde a sua emoção. Tudo
isso é religião. O mesmo fazem com Iscariote no sábado de Aleluia os meninos
católicos.
Guardei. Vinham aparecendo aos saltinhos, num andar de
marrecos presos, quatro sacristãos com as sotainas em cima da pele.
Esses efebos diabólicos, de faces carminadas e sorrizinhos
equívocos, passeavam pela sala como ménagêres preocupadas com um jantar de
cerimônia, dando a última de mão à mesa.
Depois surgiu um negrinho de batina amarela, com os pés nus,
e as unhas pintadas de ouro.
Trazia os braseiros para o incenso e quando passava pelos
homens erguia devagar o balandrau cor de enxofre.
A princesa, adoradora do fogo, olhou-o com gula e ia talvez
falar, quando apareceu o sacerdote acompanhado de um outro sacristão exótico.
À luz dos círios que estalidavam, nessa luz vacilante e
agônica, o mulato era teatral.
Alto, grosso, com o bigode trincado, as olheiras papudas, os
beiços sensuais pendentes, fez a aparição de capa encarnada e báculo de prata,
com os símbolos de Shiva potente.
- Esse homem é doido?
- Um sádico inteligente. Tem como prazer único o crime de um
príncipe que há um ano agitou a moral arquiduvidosa de Londres...
Ainda não conversou com ele? Muito interessante.
Há tempos inventou a divina junção dos sexos num tipo único,
o andrógino satânico. É admirável...
- A literatura! - fiz.
- O Mal! retrucou o poeta cínico, e apontou o Dr. Justino.
O pobre médico encostado a uma das cruzes batia palmas
clamando.
- Satanás! Satanás! Nosso Senhor! Acode!
O sacerdote virou-se. A cauda estrelada de um pavão
cobria-lhe o peito da túnica.
Curvou-se, juntou as mãos, e a paródia da missa católica
começou, em latim, mudando apenas Deus pelo Diabo. Era tal qual, curvaturas,
gestos, toques de campainha, resposta de sacristãos, tudo.
De repente, porém, o homem desceu os três degraus.
Os sacristãos surgiram com turíbulos enormes, e ele,
despregando a casula surgiu inteiramente nu, com o cavanhaque revidado, a mão
na anca, cruel como o próprio Rebelde.
As mulheres, os pequenos equívocos, o ocultista arrancaram
as roupas, rasgaram-se enquanto o seu dorso reluzente e suado curvava-se diante
dos incensos.
Depois de novo, com uma voz do metal bradou:
- Senhor! Satã! Glória da terra!
Tu que aclaras os pobres homens, Fonte de ouro, misterioso
Guarda das criptas e dos antros; Tu que moras na terra onde o ouro vive; Causa
dos pecados; Amparo da carne; Delírio único; Fim da vida; - deixa que te
adoremos! Não te exterminaram as sotainas baratas, não te perdeu o Outro, não
se acabará nunca o teu poderoso império, ó Lógica da Existência! Satanás estás
em toda a parte, és o Desejo, a Razão de Ser, o Espasmo! Ouve-nos, aparece, impera! Não vês na cruz o
larápio que roubou a tua lábia e o teu saber?
- Deus! - murmurei.
- Guarde a sua emoção, meu amigo. É do rito. Eles dizem que
Jesus foi a principio, de Lúcifer.
- É preciso encarnar o mágico - continuava o homem - neste
pedaço de pão; é preciso magoá-lo, fazê-lo sofrer, mostrar-lhe que és único,
impassível e admirável.
Que seria da humanidade se não fosse o teu Auxílio, ó
Portador dos gozos, ó Desmascarador das hipocrisias?
Todo o mundo soluça o teu Nome, a Pérsia, a Caldeia, o
Egito, a Grécia, a Roma dos roubadores da tua Pompa.
Olha pelo mundo a vitória, os filósofos, os sábios, os
médicos, as mulheres.
Os filósofos desviam o amor do Outro, os sábios alugam a
crença, os médicos arrancam dos ventres a
maternidade, fazem as assexuadas delirantes, esmagam as
crianças, as mulheres escorrem a lascívia e o ouro!
Nós todos prostrados adoramos-te, diante do impostor, do
mentiroso, desse que aconselha a renunciar à Carne!
Que venha o dinheiro, que venha a Carne! que se esmague os
seios das mulheres e se lhes crave o punhal da luxúria em frente ao impostor...
Jesus há de descer à hóstia; tu queres!
João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
Domínio Público - Biblioteca Virtual de Literatura
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