Cecy est un livre de bonne foy.
Montaigne
À Manuel Jorge de Oliveira Rocha
meu amigo.
A religião? Um misterioso sentimento, misto de terror e de
esperança, a simbolização lúgubre ou alegre de um poder que não temos e
almejamos ter, o desconhecido avassalador, o equívoco, o medo, a perversidade.
O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência,
tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa.
Ao ler os grandes diários, imagina a gente que está num pais
essencialmente católico, onde alguns matemáticos são positivistas. Entretanto,
a cidade pulula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar. A
diversidade dos cultos espantar-vos-á. São swendeborgeanos, pagãos literários,
fisiólatras, defensores de dogmas exóticos, autores de reformas da Vida,
reveladores do Futuro, amantes do Diabo, bebedores de sangue, descendentes da
rainha de Sabá, judeus, cismáticos, espíritas, babalaôs de Lagos, mulheres que
respeitam o oceano, todos os cultos, todas as crenças, todas as forças do
Susto. Quem através da calma do semblante lhes adivinhará as tragédias da alma?
Quem no seu andar tranquilo de homens sem paixões irá descobrir os reveladores
de ritos novos, os mágicos, os nevrópatas, os delirantes, os possuídos de
Satanás, os mistagogos da Morte, do Mar e do Arco-Íris? Quem poderá perceber,
ao conversar com estas criaturas, a luta fratricida por causa da interpretação
da Bíblia, a luta que faz mil religiões à espera de Jesus, cuja reaparição está
marcada para qualquer destes dias, e à espera do Anticristo, que talvez ande
por aí? Quem imaginará cavalheiros distintos em intimidade com as almas
desencarnadas, quem desvendará a conversa com os anjos nas chombergas fétidas?
Eles vão por aí, papas, profetas, crentes e reveladores,
orgulhosos cada um do seu culto, o único que é a Verdade. Falai-lhes boamente,
sem a tenção de agredi-los, e eles se confessarão - por que só uma coisa é
impossível ao homem: enganar o seu semelhante, na fé.
Foi o que fiz na reportagem a que a Gazeta de Notícias
emprestou uma tão larga hospitalidade e um tão grande ruído; foi este o meu
esforço: levantar um pouco o mistério das crenças nesta cidade.
Não é um trabalho completo. Longe disso. Cada uma dessas
religiões daria farta messe para um volume de revelações. Eu apenas entrevi a
bondade, o mal e o bizarro dos cultos, mas tão convencido e com tal desejo de
ser exato que bem pode servir de epígrafe a este livro a frase de Montaigne:
Cecy est un livre de bonne foy.
(Esse não é um livro de boa fé)
João do Rio
Fonte: Prefácio para a Edição Original
JOÃO, do Rio. As Religiões do Rio. Rio de Janeiro: Editora
Nova Aguilar, 1976.
A edição de séries jornalísticas em livros, após sua
publicação nos jornais, é relativamente comum nos dias de hoje. Em 1904, As
religiões do Rio trouxe a consagração definitiva de seu autor: Paulo Barreto, o
João do Rio.
Observação cuidadosa, percepção profunda e ironia fina se
juntam para mostrar as crenças do povo, dos intelectuais e da pequena
burguesia.
Fonte: Prefácio para a edição da Editora Nova Aguilar, 1976
JOÃO, do Rio. As Religiões do Rio. Rio de Janeiro, José
Olympio Editora, 2006.
Coleção Particular.
O tempo não faz diminuir a importância do trabalho de João
do Rio, como demonstra o interesse que desperta cada edição que reapresenta a
série de reportagens.
"O livro As religiões do Rio, do Sr. Paulo Barreto, é
único em seu gênero na literatura brasileira. Nós já possuímos, por certo,
vários quadros de costumes [...]; não possuímos, porém, um quadro social, tão
palpitante de interesse, como esse que o jovem dedicou às crenças religiosas do
Rio de Janeiro. [...] Escrito com verve, graça e cintilação de estilo, o livro
é uma verdadeira joia que deve ser apreciada pelos leitores competentes. Tem
cunho histórico, porque fotografa o estado d’alma fluminense num período de sua
evolução."
Parecer da Comissão de História do IHGB, publicado em 20 de
maio de 1907. Apud Rodrigues. Apresentação. In João, do Rio. Religiões do Rio,
2006, p. 12.
Fonte: Prefácio para a edição da José Olympio Editora, 2006.