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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Oba Biyi, Mãe Aninha

Eugênia Anna dos Santos virou figura lendária ao resgatar no Ilê Axé Opô Afonjá os fundamentos do culto afro ancestral.
Maravilhas eram atribuídas a Aninha e ao seu orixá. Em Salvador, quando havia festa no Opô Afonjá, alguém sempre dizia: "Vou a São Gonçalo ver o Xangô de mãe Aninha".
Na infância, afirmavam que ela tinha visões. A filha Cantulina Pacheco, tia Cantu, lembra que o santo de sua ialorixá tinha poderes mágicos e era capaz de transformar orobô, uma fruta ritual ligada ao culto de Xangô, em pedra.
Nascida em 13 de julho de 1869, na freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, a mítica senhora, filha dos africanos da nação Gruncis, Annió (Sérgio dos Santos) e Azambrió (Lucinha Maria da Conceição), tornou-se uma lenda do candomblé.
Seu nome religioso, Obá Biyi ("o rei nasceu aqui") a fez ainda mais forte dentro do culto que escolheu para si.
Iniciada, muito cedo, Aninha, depois dos estágios rituais e pela sua já reconhecida capacidade de liderança, e ainda com o apoio de velhos tios e tias a quem se ligara, começou sua vida de sacerdotisa, de ialorixá.
Depois dos estágios rituais pela sua já reconhecida capacidade de liderança, e ainda com o apoio de velhos tios e tias a quem se ligara, começou sua vida de sacerdotisa, de ialorixá.
Com pouco mais de trinta anos já iniciava, com a ajuda de Bamboxê, seu babalaô, sua primeira filha-de-santo, no Engenho Velho.

A saída de Aninha, do Engenho Velho

Certos desentendimentos aconteceram lá pelo Engenho Velho. Aninha reuniu todo o seu pessoal e foi para o Camarão no Rio Vermelho, onde funcionava o terreiro de tio Joaquim Vieira (Oba Sãiyá), filho de Xangô, conhecido também como Essa Oburô, um dos maiores conhecedores das seitas africanas na época, e que era amigo inseparável de tio Bamboxê.
Transferência de seu terreiro para o alto da Santa Cruz e a mudança definitiva, em 1910, para a roça de São Gonçalo do Retiro.
Aos 41 anos, assumiu o cargo de ialorixá e fundou, em São Gonçalo do Retiro, o Ilê Axé Opô Afonjá, resgatando no terreiro cerimônias dos seus ancestrais.
Ali fundou Aninha o seu terreiro, a casa de Xangô Afonjá, com Tio Joaquim, seu amigo e, de certa maneira, irmão-de-santo, que morreria pouco depois em 8 de setembro de 1910, deixando na Casa sua mulher Isidora.
Em São Gonçalo, Aninha uma mãe-de-santo jovem para os padrões da época - aos quarenta e um anos de idade, já era conhecida e respeitada por todos.
Iyá Obá Biyi já estava com 23 pessoas iniciadas por suas mãos (sem contar com as que foram iniciadas em casas particulares e outras dentro do Axé, cujos nomes não chegaram ao conhecido público por motivo ignorado) e vinte homens entre Alabês, Axoguns, Ogans etc.
Existia também grande quantidade de pessoas sem posto na casa, que faziam parte e acompanhavam todo o ritual do Axé.
Carneiro a descreve:
Essa negra alta, disposta, falando claro e corretamente, o beiço inferior avançando em ponta, era bem o expoente da raça negra do Brasil, síntese feliz da soma de conhecimentos da velha Maria Bada e da agilidade intelectual de Martiniano do Bonfim.
E sobre a sua condição de superior guardiã e renovadora coerente das tradições ancestrais, afirma, no mesmo artigo:
Muito fez pela preservação das tradições africanas no candomblé da Bahia. Darei apenas dois exemplos. Em quarto guardado à vista dos curiosos e de estranhos, prestava culto a Yá, a deusa das águas dos negros galinhas (grunces), uma tradição já, então, desaparecida.
E foi Aninha quem, no ano passado (1937), trouxe para o Opô Afonjá a festa africana dos obás de Xangô, empossando os seus doze ministros com o rito próprio, há muito esquecido pelos chefes e pelos aderentes das religiões populares.
O culto da "deusa das águas dos negros galinhas", a que se refere Carneiro, é também mencionado por D. M. Santos, ao falar sobre a implantação do terreiro de São Gonçalo por Aninha.
Daí, Iyá Obá Biyi, com sua boa vontade, seu espírito batalhador e a ajuda de todos que acompanhavam, continuou a construir o Axé, fazendo casas nos assentos já existentes para Exu, para Oxalá, está com um quarto para as Ayabás, para a Iemanjá denominado Ilê Iyá, onde Mãe Aninha adorava Iya n'ilé Gruncis (a mãe da terra de Gruncis, na África), outra para Obaluaiê, a de Oxóssi e a casa de Ilê Ibô Iku (casa de veneração aos mortos).
Nesse quarto, uma extensão da casa de Oxalá, mas dela independente pela fachada voltada para a casa de Xangô, não se acende luz elétrica e até hoje se mantém, no ciclo das festas da Casa, uma obrigação especial para a santa da terra dos pais de Aninha.
Esta misteriosa e preservada santa, a Iyá dos grunces - remanescente de um panteão para sempre perdido, é assim identificada com a Iemanjá nagô, também uma santa das águas, dos rios.
Pra lá dos grunces, quem sabe de que afluente do rio Volta e a Iemanjá nagô, do rio Ogun que corta a terra dos egbás.
Foi, aliás, na casa de Iá, que Aninha - como conta D. M. Santos - quis morrer, num retorno definitivo à terra africana de seus pais, Aniió e Azambriió:
Pediu que a levassem para a casa de Iyá, onde, depois de ter feito alguns preceitos com o cuidado e o auxílio da maior parte das suas filhas-de-santo, que lá se encontravam alguns Obás e Ogans também presentes, perdeu a fala e veio a falecer, às quinze horas, na presença de seu médico assistente, Dr. Rafael Menezes que ainda chegou a tempo de vê-la dar o último suspiro.
Carneiro também se refere à implantação do grupo dos Obás ou Ministros de Xangô, em cerimônia por ele assistida, e, ainda, à participação de Aninha no 2º Congresso Afro-Brasileiro. Carneiro conta que só às vésperas do Congresso pôde avistar-se com Aninha e como foi este encontro com a ialorixá:
No dia seguinte, domingo, fomos, pessoalmente, vê-la. A recepção excedeu a expectativa, pois em vez de uma simples mãe-de-santo que se mostrava favorável ao Congresso, encontramos umas mulher inteligente que acompanhava e compreendia os nossos propósitos, que lia os nossos estudos e amava a nossa obra.
Aninha se comprometeu a escrever um trabalho sobre os quitutes trazidos pelo negro para a Bahia. E em apenas três dias de prazo, o Opô Afonjá pôde oferecer aos congressistas uma das mais belas noites que há memória nos fastos do candomblé da Bahia.
Aninha cumpriu o prometido a Carneiro e preparou um pequeno trabalho sobre a culinária africana, entregue aos organizadores do Congresso, depois do seu final, e por eles incluídos como Apêndice ao volume O negro no Brasil, (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1940), com o título "Nota sobre comestíveis africanos".
A "Nota" é uma breve lista de vinte cinco qualidades de comidas, todas com nomes iorubás (menos uma - "farofa") e descritas - as que o foram, com extrema simplicidade, com breves referências à forma ou ao ingrediente básico nelas utilizados.
Nenhuma informação, no entanto, sobre a "maneira de fazer" e, menos ainda, ao seu possível emprego ritual no candomblé. Esse despojamento nas "receitas" de Aninha indica, claramente, no campo da comida ritual, o que significa, para o povo-de-santo, a reserva nas "coisas-de-fundamento".
Pois as "comidas africanas" listadas por Aninha eram, todas elas, comidas-de-santo, oferecidas nas obrigações aos orixás, que têm suas próprias preferências alimentares, sempre associadas a seus mitos e a uma complexa prescrição simbólica.
Sua filha-de-santo, a ialorixá Senhora, costumava evocar, em momentos de ocasional confidência, a figura de sua mãe-de-santo, sábia, altiva, rigorosa e autoritária, mas, igualmente, generosa, tolerante, compreensiva.
Aninha, segundo ela, "ensinava e vigiava". E assim promovia, indicava e preteria, na medida da inteligência, do esforço e do aproveitamento, suas filhas-de-santo, na hierarquia de mando do terreiro.
Quando um padre, discutindo com ela, lhe disse que ela, não sendo ordenada pelo Papa, não tinha "autoridade espiritual" para executar ritos religiosos, ela perguntou logo se Moisés “aquele grande profeta e chefe de seu povo” tinha sido ordenado pelo Papa?
O primeiro homem, ela afirmava, não deve ter sido um homem branco, mas sim um homem de cor, "se não preto, pelo menos vermelho".
Pois os sábios não dizem que o homem se originou na Ásia, e os brancos vieram daquele continente? Jesus deve ter sido um africano ou pelo menos uma pessoa bem escura. Seus pais não o esconderam no Egito? E o Egito não está na África? Se Jesus não fosse escuro, como eles poderiam tê-lo escondido entre o povo da África?

Roma africana

Uma das expressões criadas por Aninha, inspiradas no seu continente particular, até hoje é um dos apelidos adotados por Salvador. A ialorixá comparava a sede do poder do papa, o Vaticano fica em Roma, com a hegemonia dos principais terreiros nagôs da Bahia.

A terra dos Gruncis

A ialorixá Eugênia dos Santos, Aninha, é, pois, a outra figura modelar do candomblé baiano desse tempo. Provinha de uma geração que tipificava o fenômeno da "nacionalização ritual", em que africanos de várias origens étnicas adotavam - ou eram adotados - as comunidades religiosas de terreiros predominantemente "jeje-nagôs" ou "angolas", ou "congos".
Esses padrões dominantes são como a linha mestra num processo multilinear de evolução, aceitando ou rejeitando inovações, adaptando-se à circunstância global;
assimilado os empréstimos e adotando as invenções - mas retendo sempre a marca reveladora de sua origem, em meio à integração e à mudança.
Daí a falecida ialorixá Aninha poder afirmar, com orgulho: minha seita é nagô puro. E dizia isto no sentido de que a nação de sua seita, de seu terreiro, e que eram os padrões religiosos em que ela, desde menina, se formara, era nagô, Aí se deve entender nação-de-santo, nação-de-candomblé.
Porque, no caso de Aninha, ela mesma era e se sabia etnicamente descendente de africanos grunces, um povo que ainda hoje habita as savanas do norte de Gana e do sul do Alto Volta e que nenhuma relação mantinha com os iorubás até o tráfico negreiro.
Desses grunces já se ocupara Nina Rodrigues que conheceu ainda muitos deles, no fim século XIX. Em Os africanos no Brasil, fala ele dos "guruxins, guruncis ou gruncis, colônia preta, das mais numerosas hoje, e conhecidos pela denominação de negros galinhas".
Menciona, ainda, as etimologias populares correntes na Bahia, para o nome "galinha", que expressam racionalizações analógicas e míticas, muito comuns, de resto, na explicação de etnônimos.
Os negros galinhas teriam sido embarcados na feitoria existente na foz do rio das Galinhas (o Gallina River dos mapas ingleses), no golfo de Benin. Acima da terra dos axantes, "de cuja reputação de crueldade ainda falam com terror, ao lado dos Hauçás que vêm traficar e abastecer-se em suas feiras".
Este porto, muito ativo no tráfico de escravos até meados do século XIX, era o local mais direto ou mais fácil de atingir, para os negros grunces trazidos do norte, contornando a terra perigosa dos axantes.
"trata-se, pois, de uma zona africana, de fato, muito pouco conhecida ainda hoje, quase de todos desconhecida até não há muito tempo, para além do país dos Kongs, nos domínios dos Mossis".