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sábado, 24 de setembro de 2011

Yeda Pessoa de Castro


A etnolingüista Yeda Pessoa de Castro, de 65 anos, levou 40 anos de estudos na Bahia, no Congo, na Nigéria e em Trinidad y Tobago para trazer à tona uma tese polêmica:
o idioma que se fala no Brasil não é europeu. Trata-se de um português africanizado - uma extraordinária convergência entre o banto (grupo etnolingüístico da África meridional) e a língua de Camões.
''No encontro entre as línguas africanas e o português arcaico, em lugar de surgir um conflito, houve um nivelamento, um processo de africanização'', garante a ex-diretora do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do Comitê Científico Brasileiro do Projeto Rota do Escravo, da Unesco.
Yeda não poupa filólogos e estudiosos acadêmicos para apontar que só o preconceito etnocêntrico fez com que palavras que garante ser banto, como mocotó e moranga, tenham atribuição indígena nos dicionários. E que só se estudou a cultura iorubá porque era um povo que tinha escrita.
''Chegou-se a um estereótipo de que os iorubás eram superiores. Zumbi dos Palmares era banto, mas, no filme de Cacá Diegues, os palmarinos falam iorubá, quando não havia um deles ainda no Brasil'', argumenta, furibunda.
A tese de Yeda está exposta no recém-lançado Falares africanos na Bahia (Topbooks, 368 págs., R$ 40) - que o colunista do Jornal do Brasil Millôr Fernandes classifica como sua ''atual bíblia''.
A seguir, a entrevista de Yeda:
- A senhora defende a tese de que o português falado no Brasil é africanizado. Por quê?
- Dos séculos 16 ao 19, os bantos foram o grupo negro de maior densidade populacional no Brasil e se distribuíram por várias regiões.
Do ponto de vista da linguagem, os aportes, os empréstimos africanos do português no Brasil, graças à escravidão, são todos de origem banto.
E tão integrados ao sistema lingüístico do português (o que já demonstra uma antigüidade maior e, portanto, uma aproximação e uma influência maiores), que deles se formam derivados em português a partir de uma raiz banto.
De molambo vem esmolambado, molambento; de fuxico, fuxiquento, fuxiqueiro. Além disso, as denominações das religiões afro-brasileiras são de origem banto: candomblé, macumba, catimbó, calundu - que é a forma mais antiga de denominação dessas religiões e já se encontra registrada em Gregório de Mattos (poeta barroco) no século 17.
- Houve uma integração das palavras banto ao português?
- Totalmente. É uma integração tamanha que a gente não se apercebe de sua origem.
É o caso, por exemplo, de caçula, única palavra que temos para designar o filho mais novo. A palavra em português é benjamim, que, no Brasil, é uma extensão de tomada.
O mesmo acontece com cochilar: ninguém diz dormitar, no Brasil.
E bunda que, graças à mídia, substituiu nádegas. Bunda é banto. Estamos sentados no banto!
- Por que pouco se estuda essa influência, se é assim tão profunda?
- Há pouca informação sobre as línguas banto no Brasil. A posição das nossas universidades é não admitir que línguas sem tradição de letras, sem escritura, pudessem influir numa língua de tradição literária como a portuguesa.
Passa-se a idéia de que os africanos só começaram a falar língua de gente quando aprenderam o português, como se antes não falassem língua humana nenhuma.
- A maioria dos estudos sobre o tema concentra-se na influência iorubá, não é?
- Isso aconteceu a partir do trabalho do médico Nina Rodrigues, nos anos 30. Os iorubás, que foram trazidos para o Brasil no final do século 18 e, mais marcadamente, no século 19, já no fim do tráfico negreiro, enraizaram-se em Salvador, um centro urbano. Por isso, tiveram condições de resistir mais à língua e à religião dos portugueses e se conservar mais próximos às suas raízes do que os demais povos, que estavam aqui há dois, três séculos.
Em seu filme Quilombo, Cacá Diegues pôs os palmarinos falando iorubá quando nem havia iorubás no Brasil. Zumbi dos Palmares era banto.
Depois, a Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, patrocinou uma versão televisiva em que os palmarinos falavam língua de preto-velho, cheio daqueles zi, que existem no banto, sim, mas só em algumas palavras.
Acontece que os iorubás tinham uma escrita, o que criou o estereótipo de que eram superiores aos demais, que teriam sido absorvidos por eles.
- E não foi assim?
- Ora, qualquer falante de uma língua tem a tendência de introduzir numa nova língua adquirida seus hábitos articulatórios, de pronúncia.
Como esses bantos, maioria no Brasil até o século 19, não teriam deixado nenhum vestígio de seus falares no português que falamos no Brasil? A minha perplexidade começou a partir daí.
- E a que conclusão a senhora chegou?
- A de que, no encontro das línguas africanas, o banto em particular, com o português arcaico, em vez de emergir uma nova língua - uma forma crioula, como no Caribe - aconteceu um processo de africanização. Por quê? Em função da semelhança estrutural entre o banto e o português arcaico.
- Como assim?
- As línguas banto têm sete vogais orais, do ponto de vista da pronúncia. Acontece o mesmo no português do Brasil e o português arcaico: nós temos a, é, ê, i, ó, ô, u. É uma estrutura extremamente vocalizada.
Não existe uma sílaba que não seja acompanhada de uma vogal. Mesmo as sílabas átonas são pronunciadas no Brasil como nas línguas banto.
No Brasil, a gente diz: menino. Em Portugal, hoje, fala-se apenas a vogal central: mnino.
Por conta do banto, nossa tendência é não pronunciar os erres finais dos infinitivos.
Por exemplo: falá e não falar.
Temos também a vocalização do l final.
Só Getulio Vargas falava Brasil.
Mas mesmo os apresentadores do Jornal Nacional, um padrão de português, falam Brasiu.
No gol do Brasil, berra-se Brasiuuuuu.
Como no banto, uma sílaba não é fechada com consoante e sim, com vogal.
- Se o que falamos é uma mistura de português com banto, onde foram parar as línguas indígenas?
- Os índios cedo se retiraram das cidades para as matas. A influência das línguas indígenas é mais localizada em determinadas áreas rurais, enquanto que os negros africanos, majoritários, influenciaram cidades e zonas rurais. Aos vestígios indígenas no português, foram sobrepostos os falares africanos.
- A senhora acha, então, que existe uma supervalorização da influência indígena no português?
- Exatamente. E o grande incentivador dessa corrente no Brasil, que procurava origem indígena em termos que não se identificava como lusitanos, foi o lingüista Teodoro Sampaio.
É o caso, por exemplo, de mocotó. Para Sampaio, mocotó viria de mbokotog, uma coisa que treme, que é mole, numa relação com o aspecto visual da comida. Mas é uma palavra banto. Os índios não conheciam gado bovino, não podiam ter uma palavra para isso. Há uma tendência até hoje de não dizer que as palavras são africanas. A academia sempre quis mostrar que o português do Brasil não é africanizado.
- Pode dar outros exemplos?
- No Aurélio, balangandã aparece como um termo onomatopaico, a imitação de ruído de objetos que tilintam enquanto se movem. O balangandã é palavra banto, que não imita ruído de espécie alguma: quer dizer penduricalho e também testículos. Veja o ridículo de dizer que testículos tilintam.
- Quer dizer que, apesar dos esforços dos colonizadores, não falamos uma língua européia?
- Não. Chegamos a uma convergência, graças à extraordinária coincidência de estruturas entre o banto e o português. Arrisco dizer que a alegada unidade lingüística do português se deve sobretudo aos falantes africanos. Eles foram os agentes transformadores e difusores da língua portuguesa em território brasileiro.
- É uma idéia polêmica.
- Sei que estou pregando no deserto. Tenho uma história curiosa para ilustrar esse esquecimento da influência africana no português.
Certa vez, encontrei o ex-presidente José Sarney e o cumprimentei: O senhor deu um excelente exemplo de africanização do português no Brasil. Como se sabe, o Maranhão se orgulha de falar um português castiço. Mas Sarney entrou para a Academia Brasileira de Letras tendo como carro-chefe o livro Marimbondos de fogo. Eu disse para ele: Deveria ser Vespas de fogo, porque marimbondo é uma palavra africana. Ele ficou espantadíssimo...
Yeda Pessoa de Castro: ''A integração entre português e banto é tamanha que a gente não se apercebe da origem africana de palavras como cochilar ou marimbondo''
fonte :
Com a África na ponta da língua
Pesquisadora baiana garante que o Brasil africanizou o português de Camões
Eliane Azevedo