Na peregrinação pelos templos do Deus Futuro guardo como
originais uma casa de cartomancia na rua do Ouvidor entre as modistas do tom e
a elegância máxima, a Ceguinha vidente da rua da Misericórdia, a Rosa que olha
n´água e é astróloga, Mme. de F. sonâmbula numa rua paralela à praia de
Botafogo, a Corcundinha da rua General Câmara e a esquisita Mme. Matilde do
Catete.
A Ceguinha tem a face macerada e é a exploração de quatro ou
cinco.
Vive numa cadeira, com os olhos cheios de pus.
O grande Deus fez-lhe a treva em torno, para melhor ler a
sorte dos outros nos meandros do céu.
Dizem que os agentes da polícia vão lá para saber o
paradeiro dos gatunos e que os gatunos também vão a ver se escapam. Imóvel como
um santo indiano à porta da imortalidade, a Ceguinha, com a mesma dutilidade,
desvenda-lhes o Futuro. Às vezes aparecem senhoras.
A Ceguinha curva-se, e pinta o Destino com a mesma calma
dolorosa.
A Rosa, com as fontes saltadas, o que em magia se chama
cornos de Moisés, é um assombro de observação.
Esse exemplar único de astrologia conhece mesmo algumas
práticas antigas.
Quando a fomos procurar, olhou-nos bem.
- Por que veio, se nunca acreditará?
- Estou numa situação difícil.
- Ouça a voz de Deus.
- Mas a minha alma sofre.
- O homem tem muitas almas...
- Mas se posso saber o futuro n' água?
- A água é onde se miram os astros que têm a vida da gente.
- Como se consulta?
- Vendo... Alguns astros de outrora não têm mais importância
hoje: outros receberam-lhe a força.
Os meus horóscopos são certos; o Destino ordena-me. Mas eu
só falo com os homens que a dor faz tristes e crentes.
A Corcundinha, discípula de uma Josefina, tem uma fama tão
grande que chega a deitar cartas por dia, às vezes para mais de cinquenta
pessoas.
Cada consulta custa cinco mil réis e ela só anuncia coisas lúgubres.
Mme. de F... esteve na Inglaterra; em estado natural discute
o psiquismo, e quando sonambulizada aparece numa túnica preta.
Dizem que predisse os acontecimentos da nossa polícia e
prevê um futuro desagradável da pendência brasileira com o Peru. E lúgubre.
A roda que a frequenta, dá-se como ultrachique.
Mme. Matilde, a cartomante do high-life, já teve criados de
casaca e possui uma linda galeria de quadros. De todos os templos, o dessa
senhora é o mais excêntrico. Mme. Matilde, para os íntimos a princesa Matilde,
é uma criatura que fala com volubilidade.
Há alguns anos foi a Paris, onde estudou com Papus e Mme. de
Thèbes.
Conhece a cartomancia, a telepatia, o sonambulismo, a
metafísica das estrelas, a quiromancia, coisas complicadas de que faz uma
interessante confusão.
Além de tudo isso, a princesa é crítica de pintura e
interessa-se pelo movimento universal.
Quando me anunciei, a agradável dama mandou iluminar o seu
salão de visitas, e entre as colchas japonesas, os quadros de valor, os bibelôs
do Oriente e as peles de tigres, fez a sua aparição.
Vinha de vestido vermelho, um vestido de mangas perdidas,
donde os seus braços surgiam cor de ouro, e vinha com ela a essência capitosa
de vinte frascos de perfume. Mme.Matilde embalsamava.
Deixou-se cair num divã, passeou com as mãos pelo ar e
disse:
- Estou cansadíssima. Se não me mandasse dizer quem era, não
o teria recebido.
Simpatizo com o seu ser.
Curvei-me comovido.
- Não podia falar das sacerdotisas do Futuro, sem ouvi-la.
...
Nós a todos damos o favo da ilusão...
Quando morre meu pai?
Meu marido abandona-me?
Será minha a mulher de Sicrano?
Fulana é fiel?
Realiza-se o negócio?
E nós aquietamos os instintos com o lenitivo do bem.
Ainda há pouco tempo, entrou por esta sala uma menina em prantos.
Era domingo. Não deito cartas aos domingos.
Neguei-me.
Soluçou, pediu, ajoelhou. Logo que a vi, percebendo a sua
agitação, espalhei as cartas ao acaso.
A menina vai cometer um desatino!
Ela olhou-me espantada.
Sim, ia dali suicidar-se, porque a abandonara o amante,
grávida e sem trabalho.
Fiz as cartas dizerem que o amante voltava e a pequena não
morreu.
- Cartas salvadoras!
- Dias antes aparecera um marido a interrogar-me a respeito
do seu ménage, derruído por incompatibilidade de gênios.
Ela escrevia-lhe cartas pedindo para voltar.
Que devo fazer?
Voltar! Mas teve amantes! É boa.
Abandonada sem saber trabalhar e sem recursos queria o
senhor que a pobre morresse?
Depois foi-lhe o Sr. fiel?
Não! Era lá possível a ela deixar de ter um amante?...
- Ou mesmo dois?
- Ou três, não vai ao caso.
Ele refletiu e vivem os dois bem.
Quantos desmandos evitamos, quantas desgraças, quantos
escândalos!
Recorda-se da história do oráculo de Delfos?
É a história da prudência, de ser ambíguo para não se
enganar. A nossa é muito mais difícil.
- Mente com franqueza.
- Diz verdades e consola. Muitas das minhas clientes vêm
aqui apenas como um consolo.
Contam as mágoas e vão-se.
- Que trabalho deve ter!
- Faço experiências até altas horas com o meu criado Júlio,
e vou às estalagens, aos cortiços, ler grátis nas mãos dos pobres.
Não imagina como sou recebida!
Deito cartas, leio nas mãos. É o estudo em que procedo sem
perguntar para ter a certeza.
E é certo! Adivinho coisas de há quatro e cinco anos
passados, chego a descrever as roupas das pessoas distantes e prevejo. A
previsão é de resto uma faculdade que desenvolvi.
- É feliz?
- Tudo quanto quero, faço.
- Tem talvez a alma de algum mágico antigo...
Mme. Matilde recostou o seu corpo elegante.
- Não: tive três vidas apenas.
Da primeira fui físico, da segunda advogado e na terceira
odalisca...
Oh! mistério!
A sacerdotisa possuía o saber dos físicos, falava como um
advogado e naquele momento tinha a inebriante doçura das odaliscas.
Peguei-lhe a mão e disse baixinho:
- Já um ocultista me afirmou que fui Nero e depois Ponce de
Leon...
Ela riu um riso penado.
- Ponce atraído pelo mistério das mãos.
- Pela beleza.
- Todos nós temos a atração das mãos.
A mão é um resumo do Céu.
Cada astro tem a sua parte. Júpiter é o índex, Saturno o
médio, o Sol o anular, Mercúrio Hermés o mínimo. A Lua tem a região do Sul,
Marte todo o meio, onde se dão os combates da vida e Vênus o grande monte.
João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
Domínio Público - Biblioteca Virtual de Literatura
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