O Culto do Mar é praticado pelos pescadores das nossas
praias.
É um culto variado, cosmólatra e fantasista, com que entram a
lua e alguns elementos divinizados.
- Não conhece os nossos pescadores?
Gente tranquila. Raramente se agridem e sempre por questão
de pesca.
Os pescadores formam um corpo distinto, diverso dos catraieiros,
dos marítimos, dessa população ambígua e viciada que anda no cais à beira das
ondas perturbadoras.
Não há canto da nossa baia que não tenha uma colônia de
pescadores. Vivem todos muito calmos, sem saber do resto do mundo.
Enfim, uma classe à parte, com festas próprias, que não se
afasta do oceano e é unida pelo culto do mar. Os pescadores são os últimos
idólatras das vagas.
Conversar com eles é ter impressões absolutamente inéditas
de moral, de filosofia e de religião.
...
- Mas os pescadores são cristãos?
- Está claro. Mas cristãos puros é difícil encontrar hoje
afora os evangelistas e os sírios.
- Lembro-me da festa de Nossa Senhora, na Lapa.
- É outra coisa.
- Vi em Santa Luzia a devoção de São Pedro.
- Era promessa de um rapaz que, por falta de meios não a
continua.
Deixemos N. Senhora e São Pedro. Falo de um culto que emana
no intimo respeito das ondas.
Todos os pescadores das praias e das ilhas próximas
festejam, sacrificam ao mar e têm um objeto especial de devoção.
Não há nenhum que não tema a Mãe-d'Água, a Sereia, os
Tritões e não respeite a Lua.
Conheço três manifestações desse culto.
A Mãe-d'Água entre os pescadores de Santo Cristo e de Santa
Luzia, a da Lua, e do Mar e a do Arco-Íris.
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Deixemos N. Senhora e São Pedro. Falo de um culto que emana
no intimo respeito das ondas.
Todos os pescadores das praias e das ilhas próximas
festejam, sacrificam ao mar e têm um objeto especial de
devoção.
Não há nenhum que não tema a Mãe-d'Água, a Sereia, os
Tritões e não respeite a Lua.
Conheço três manifestações desse culto. A Mãe-d'Água entre
os pescadores de Santo Cristo e de Santa Luzia, a da Lua, e do Mar e a do
Arco-Íris.
- O Arco-Íris?
- Em Sepetiba. É dos mais completos e dos mais belos, tendo
como sacerdote uma mulher.
O Arco-Íris, a adoração de um deus que se curva nas nuvens
policromo e vago, que ergue das ondas um facho de luzes brandas e desaparece, o
terror daquilo que se desfaz, sem que se saiba como!
Era uma fantasia!
Mas os cosmólatras inventam tanta coisa para perfumar a sua
ignorância, que bem podia ser.
- Não há dúvidas - disse o meu amigo. - O arco-íris, é uma antiquíssima
divindade, um anúncio dos céus. Lembra-te disso e acompanha-me.
Acompanhei-o, durante um inverno, muito úmido e muito
estrelado.
Os pescadores têm um temor incalculável da polícia.
Desde que um curioso aparece, guardam segredo das suas
crenças e negam toda e qualquer co-participação em religião que não seja a
católica.
Como são primitivos e rudimentares, porém, a bondade que têm
é fundamental, transforma-os e não há nenhum que não acabe confiante e falador,
exagerando para espantar os mistérios cosmológicos.
Esses mistérios são de uma beleza delicada e antiga, de uma
beleza de rapsodos que relembra as fantasias escandinavas e helenas, um montão
de lendas e de ritos enervantes.
Há nas práticas e nas idéias trechos de Hesíodo, de Cristo e
dos pretos-minas e a gente afunda-se, quando os quer guardar, num banho de
cristal batido pelo sol.
Quase sempre os diretores das festas, os sacerdotes não são
pescadores.
Em Santo Cristo é o padeiro Carvalho, homem de posses - diz
o meu amigo.
Os sacrifícios são feitos geralmente à noite.
Vamos os dois interrogar os pescadores. Essa gente teme a
Mãe-d'Água, tendo a longínqua recordação de que ela aparece vestida de branco
seguida de homens barbados de verde.
A aparição feminina grita de repente, apaga as luzes na
barca, faz as cerrações, afasta os peixes, e às vezes canta.
- Como a Darclée?
- Como as sereias meu caro. Os pescadores têm que cair no
fundo da barca tapando os ouvidos. Ulisses amarrava-se...
Para aplacar a deusa do mar, ser impalpável e lindo, os
pescadores fazem o sacrifício de um carneiro. Matam o bicho à beira do oceano;
o sangue cai numa cova aberta na areia.
Depois partem canoas levando pedaços do animal com presentes
que deixam cair no fundo da baía com uma oração votiva.
Um rapazola, lindo como o Apolo do Belveder, responde às
nossas perguntas
- Eu fui batizado, patrão.
- Mas sabe a história da Mãe-d'Água?
- Sei, sim. Aqui, para Mãe-d'Água ser boa fazem-se
despachos.
Na ilha do Governador compram tudo do mais fino, põem a mesa
à beira da praia, com talheres de prata, copos bonitos, a toalha alva e
galinhas sem cabeça, para a santa comer.
...
- E as festas, quem as faz?
- Para as festas concorrem todos.
Das três barcas que eu via, a primeira era para o Arco-íris,
a segunda para a Mãe-d'Água e a terceira acompanharia as duas formando a
trilogia, duas na frente e uma atrás.
O meu amigo, lembrando mitologias diversas, quis saber a
razão desse triângulo.
O rapaz respondeu apenas:
- É costume.
É costume também pagar em todas as religiões.
Tanto os feiticeiros como os condutores das barcas recebem
dinheiro.
Os remadores pertencentes ao Arco-Íris têm seis mil réis, os
da Mãe-d'Água três e os acompanhadores nove.
À noite, já no céu negro o crescente lunar, depois dos
búzios e dos baralhos terem indicado os dias em que não se poderá pescar,
começa o sacrifício.
Forçado a ficar de longe, embrulhado num paletó em que
tiritava, vi sair da casa da Maria uma teoria de camisolas brancas com as
lanternas de azeite de boto na mão, acompanhando dois homens, um vestido de
seda, outro de cetim.
O primeiro era o voga da canoa do Arco-íris, o segundo ia
dirigir a da Mãe-d'Água.
As canoas foram arrastadas para o mar.
Na do Arco-Íris iam os mais finos presentes com os
despachos, na da Mãe-d'Água objetos caros e femininos.
Quando as canoas partiram em direção ao Norte, levando
aqueles estranhos remadores vestidos de morim branco, os que ficaram na praia
levantaram os braços, e a Maria da Silva, na turba, sorria como quem se
desobriga de uma promessa sagrada.
- E ao voltarem, que há? - indaguei ao rapaz.
- Voltam de costas, de frente para o mar, entram assim em
casa; os remadores, menos os do Arco-íris, batem com a cabeça no chão, e a
festa continua.
- Mas que é o Arco-íris, afinal?
- O Arco-íris indica se a gente está bem com Deus.
É um aviso, o sinal da união, o único meio por que o mar se
deixa ver... e a crença.
Olhei mais o oceano soluçante sob o vento álgido.
As barcas todas acesas de luzes frouxas perdiam-se na
fosforência lunar; os remadores cantavam, e eu ouvia como a copla de uma
barcarola nostálgica.
Em frente da casa de Maria, o cateretê delirava e sombras de
adolescentes desciam a praia ágeis e finas.
A Maria, sentada, sorrindo, era indecifrável.
E para que decifrá-la?
O seu culto era o culto de todas as épocas e de todos os
homens.
O mar continua a ser o grande mistério.
Para os espíritos simples que temem o diabo e guardam na
alma crenças acumuladas, só a Lua com a imagem de Nossa Senhora pode explicar a
angústia do mar e só as sete cores do arco do céu podem simbolizar o vago
mistério da união do oceano e do homem.
João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
Domínio Público - Biblioteca Virtual de Literatura
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