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quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Culto do Mar

As Religiões no Rio - João do Rio

O Culto do Mar é praticado pelos pescadores das nossas praias.
É um culto variado, cosmólatra e fantasista, com que entram a lua e alguns elementos divinizados.
- Não conhece os nossos pescadores?
Gente tranquila. Raramente se agridem e sempre por questão de pesca.
Os pescadores formam um corpo distinto, diverso dos catraieiros, dos marítimos, dessa população ambígua e viciada que anda no cais à beira das ondas perturbadoras.
Não há canto da nossa baia que não tenha uma colônia de pescadores. Vivem todos muito calmos, sem saber do resto do mundo.
Enfim, uma classe à parte, com festas próprias, que não se afasta do oceano e é unida pelo culto do mar. Os pescadores são os últimos idólatras das vagas.
Conversar com eles é ter impressões absolutamente inéditas de moral, de filosofia e de religião.
...
- Mas os pescadores são cristãos?
- Está claro. Mas cristãos puros é difícil encontrar hoje afora os evangelistas e os sírios.
- Lembro-me da festa de Nossa Senhora, na Lapa.
- É outra coisa.
- Vi em Santa Luzia a devoção de São Pedro.
- Era promessa de um rapaz que, por falta de meios não a continua.
Deixemos N. Senhora e São Pedro. Falo de um culto que emana no intimo respeito das ondas.
Todos os pescadores das praias e das ilhas próximas festejam, sacrificam ao mar e têm um objeto especial de devoção.
Não há nenhum que não tema a Mãe-d'Água, a Sereia, os Tritões e não respeite a Lua.
Conheço três manifestações desse culto.
A Mãe-d'Água entre os pescadores de Santo Cristo e de Santa Luzia, a da Lua, e do Mar e a do Arco-Íris.
...
Deixemos N. Senhora e São Pedro. Falo de um culto que emana no intimo respeito das ondas.
Todos os pescadores das praias e das ilhas próximas festejam, sacrificam ao mar e têm um objeto especial de
devoção.
Não há nenhum que não tema a Mãe-d'Água, a Sereia, os Tritões e não respeite a Lua.
Conheço três manifestações desse culto. A Mãe-d'Água entre os pescadores de Santo Cristo e de Santa Luzia, a da Lua, e do Mar e a do Arco-Íris.
- O Arco-Íris?
- Em Sepetiba. É dos mais completos e dos mais belos, tendo como sacerdote uma mulher.
O Arco-Íris, a adoração de um deus que se curva nas nuvens policromo e vago, que ergue das ondas um facho de luzes brandas e desaparece, o terror daquilo que se desfaz, sem que se saiba como!
Era uma fantasia!
Mas os cosmólatras inventam tanta coisa para perfumar a sua ignorância, que bem podia ser.
- Não há dúvidas - disse o meu amigo. - O arco-íris, é uma antiquíssima divindade, um anúncio dos céus. Lembra-te disso e acompanha-me.
Acompanhei-o, durante um inverno, muito úmido e muito estrelado.
Os pescadores têm um temor incalculável da polícia.
Desde que um curioso aparece, guardam segredo das suas crenças e negam toda e qualquer co-participação em religião que não seja a católica.
Como são primitivos e rudimentares, porém, a bondade que têm é fundamental, transforma-os e não há nenhum que não acabe confiante e falador, exagerando para espantar os mistérios cosmológicos.
Esses mistérios são de uma beleza delicada e antiga, de uma beleza de rapsodos que relembra as fantasias escandinavas e helenas, um montão de lendas e de ritos enervantes.
Há nas práticas e nas idéias trechos de Hesíodo, de Cristo e dos pretos-minas e a gente afunda-se, quando os quer guardar, num banho de cristal batido pelo sol.
Quase sempre os diretores das festas, os sacerdotes não são pescadores.
Em Santo Cristo é o padeiro Carvalho, homem de posses - diz o meu amigo.
Os sacrifícios são feitos geralmente à noite.
Vamos os dois interrogar os pescadores. Essa gente teme a Mãe-d'Água, tendo a longínqua recordação de que ela aparece vestida de branco seguida de homens barbados de verde.
A aparição feminina grita de repente, apaga as luzes na barca, faz as cerrações, afasta os peixes, e às vezes canta.
- Como a Darclée?
- Como as sereias meu caro. Os pescadores têm que cair no fundo da barca tapando os ouvidos. Ulisses amarrava-se...
Para aplacar a deusa do mar, ser impalpável e lindo, os pescadores fazem o sacrifício de um carneiro. Matam o bicho à beira do oceano; o sangue cai numa cova aberta na areia.
Depois partem canoas levando pedaços do animal com presentes que deixam cair no fundo da baía com uma oração votiva.
Um rapazola, lindo como o Apolo do Belveder, responde às nossas perguntas
- Eu fui batizado, patrão.
- Mas sabe a história da Mãe-d'Água?
- Sei, sim. Aqui, para Mãe-d'Água ser boa fazem-se despachos.
Na ilha do Governador compram tudo do mais fino, põem a mesa à beira da praia, com talheres de prata, copos bonitos, a toalha alva e galinhas sem cabeça, para a santa comer.

...
- E as festas, quem as faz?
- Para as festas concorrem todos.
Das três barcas que eu via, a primeira era para o Arco-íris, a segunda para a Mãe-d'Água e a terceira acompanharia as duas formando a trilogia, duas na frente e uma atrás.
O meu amigo, lembrando mitologias diversas, quis saber a razão desse triângulo.
O rapaz respondeu apenas:
- É costume.
É costume também pagar em todas as religiões.
Tanto os feiticeiros como os condutores das barcas recebem dinheiro.
Os remadores pertencentes ao Arco-Íris têm seis mil réis, os da Mãe-d'Água três e os acompanhadores nove.
À noite, já no céu negro o crescente lunar, depois dos búzios e dos baralhos terem indicado os dias em que não se poderá pescar, começa o sacrifício.
Forçado a ficar de longe, embrulhado num paletó em que tiritava, vi sair da casa da Maria uma teoria de camisolas brancas com as lanternas de azeite de boto na mão, acompanhando dois homens, um vestido de seda, outro de cetim.
O primeiro era o voga da canoa do Arco-íris, o segundo ia dirigir a da Mãe-d'Água.
As canoas foram arrastadas para o mar.
Na do Arco-Íris iam os mais finos presentes com os despachos, na da Mãe-d'Água objetos caros e femininos.
Quando as canoas partiram em direção ao Norte, levando aqueles estranhos remadores vestidos de morim branco, os que ficaram na praia levantaram os braços, e a Maria da Silva, na turba, sorria como quem se desobriga de uma promessa sagrada.
- E ao voltarem, que há? - indaguei ao rapaz.
- Voltam de costas, de frente para o mar, entram assim em casa; os remadores, menos os do Arco-íris, batem com a cabeça no chão, e a festa continua.
- Mas que é o Arco-íris, afinal?
- O Arco-íris indica se a gente está bem com Deus.
É um aviso, o sinal da união, o único meio por que o mar se deixa ver... e a crença.
Olhei mais o oceano soluçante sob o vento álgido.
As barcas todas acesas de luzes frouxas perdiam-se na fosforência lunar; os remadores cantavam, e eu ouvia como a copla de uma barcarola nostálgica.
Em frente da casa de Maria, o cateretê delirava e sombras de adolescentes desciam a praia ágeis e finas.
A Maria, sentada, sorrindo, era indecifrável.
E para que decifrá-la?
O seu culto era o culto de todas as épocas e de todos os homens.
O mar continua a ser o grande mistério.
Para os espíritos simples que temem o diabo e guardam na alma crenças acumuladas, só a Lua com a imagem de Nossa Senhora pode explicar a angústia do mar e só as sete cores do arco do céu podem simbolizar o vago mistério da união do oceano e do homem.

João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
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