A Federação fica na rua do Rosário, 97.
É um grande prédio, cheio de luz e de claridade.
Cumprem-se aí os preceitos da ortodoxia espírita; não há
remuneração de trabalho e nada se recebe pelas consultas.
A diretoria gasta parte do dia a servir os irmãos, tratando
da contabilidade, da biblioteca, do jornal, dos doentes.
A instalação é magnífica.
No primeiro pavimento ficam a biblioteca, a sala de entrega
do receituário, a secretaria, o salão de espera dos consultantes e os
consultórios. Seis mediuns psicográficos prestam-se duas horas por dia a
receitar, e as salas conservam-se sempre cheias de uma multidão de doentes,
mulheres, homens, crianças, figuras dolorosas com um laivo de esperança no
olhar.
A casa está sonora do rumor contínuo, mas tudo é simples,
caridoso e sem espalhafato.
Quando entramos não se lhe altera a vida nervosa.
A Federação parece um banco de caridade, instalado à beira
do outro mundo. Os homens agitam-se, andam, conversam, os doentes esperam que
os espíritas venham receitar pelo braço dos mediuns, sob a ação psicográfica,
falam e conversam enquanto o braço escreve.
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A Federação parece um banco de caridade, instalado à beira
do outro mundo.
Os homens agitam-se, andam, conversam, os doentes esperam
que os espíritas venham receitar pelo braço dos mediuns, sob a ação psicográfica,
falam e conversam enquanto o braço escreve.
Atravessamos a sala dos clientes, entramos no consultório do
Sr. Richard.
Há, uma hora que esse honrado cavalheiro, espírita
convencido, escreve e já receitou para quarenta e sete pessoas.
- Há curas? - perguntamos nós, olhando as fileiras de
doentes.
- Muitas. Nós, porém, não tomamos nota.
- Mas o senhor não se lembra de ter curado ninguém?
- A mim me dizem que pus boa uma pessoa da família do
general Argolo.
Mas não sei nem devo dizer. É o preceito de Deus.
Deixamo-lo receitando, já perfeitamente normalizados com
aquele ambiente estranho, e interrogamos.
Há milhares de curas.
...
No segundo
pavimento, encontramos desenhos de homens ignorantes inspirados pelos grandes
pintores. Rafael guia a mão de operários em movimentados quadros de batalhas, e
outros pintores mortos, sob incógnito, fazem desenhos extraordinários por
intermédio de maquinistas da Armada...
Essas coisas nos
eram explicadas simplesmente, como se tratássemos de coisas naturais.
- Quando há sessão?
- perguntou o nosso amigo.
- Hoje, às 7 horas.
Podem ver, é a sessão de estudo.
Nós ainda olhamos
fotografias de espíritos, o retrato de D. Romualdo, um sacerdote que de
além-túmulo vem sempre visitar a Federação, e esperamos a sessão de estudo,
atraídos, querendo ver, querendo ter a doce paz daqueles entes.
A sessão começou às
7½, na sala do 2.º andar, toda mobiliada de canela cirée com frisos de ouro.
Nas cadeiras,
cavalheiros de sobrecasaca, senhoras, demoiselles.
Os bicos Auer acesos
banhavam de luz clara toda a sala, e pelas janelas abertas ouviam-se na rua o
estalar de chicotes e gritos de cocheiros.
Sem as visitas do
irmão Samuel, ninguém diria uma sessão espírita.
Depois de lida e
aprovada a ata da sessão anterior, como na Câmara dos Deputados, Leopoldo
Cirne, o presidente, que ao começo nos dissera um adeusinho, perfeitamente
mundano, transfigura-se e a sua voz toma suavidades inéditas.
- Concentremo-nos,
irmãos!
Imediatamente todos
fechamos os olhos, como querendo concentrar o pensamento numa única idéia. As
senhoras tapam o rosto com o leque e têm os olhos cerrados.
De repente, como
movida por todas aquelas vontades, a mão do psicógrafo cai, apanha o papel, o
lápis, e escreve rapidamente linhas adelgadas.
No silêncio ouve-se
o lápis roçando o papel de leve; e é nesse silêncio que o lápis pára, o medium
esfrega os olhos e começa a leitura da comunicação.
- "Paz!
Irmãos. Deus seja convosco. As palavras do filósofo grego: conhece-te a ti
mesmo...
É Samuel o espírito
que fala, achando que para compreender a vida e o bem é necessário antes de
tudo conhecermo-nos a nós mesmos.
...
- Terminamos o
nosso estudo.
Não há mais quem
queira falar?
Leopoldo Cirne
ergueu a loira cabeça de Salvador, fixando os olhos na minha pobre pessoa.
Era a atração do
abismo, uma explicação indireta, feita como quem, muito cansado da travessia
por mundos ignorados, viesse a conversar à beira da estrada com o viandante
descrente.
"O
Espiritismo, fez ele, ou revelação dos espíritos, sistematizada em doutrina por
Allan Kardec, que recolheu os seus ensinos acerca do universo e da vida e das
leis que os regem, e com os quais formou as obras ditas fundamentais:
O Livro dos
Espíritos - O Livro dos médiuns - O Céu e o Inferno - A Gênese - O Evangelho
segundo o Espiritismo, reúne o tríplice aspecto de ciência, filosofia e moral
ou religião.
Como ciência de
observação, estuda, não somente os fenômenos espíritas, desde os mais simples,
como os ruídos e perturbações (casas mal-assombradas) e os efeitos físicos
(deslocação de objetos sem contato) etc., até os mais transcendentes, como as
materializações de espíritos (observações de Crookes, Aksakoff, Zoellner, Dr.
Gibier etc.), como também todos os fenômenos da natureza, investigando a gênese
de todos os seres, numa vasta síntese, e neles buscando a origem do princípio
espiritual, dos estados mais rudimentares aos mais complexos pois que um germe,
um esboço dessa natureza parece constituir a essência de toda forma.
João do Rio - As Religiões no Rio, João do Rio,
Domínio Público - Biblioteca Virtual de Literatura
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